Dráuzio Varella*
Violência é uma doença epidêmica, contagiosa e de múltiplas causas. A
análise que a sociedade costuma fazer dela se baseia em fatores emocionais, quase
sempre gerados por crime chocante, falta de segurança nas ruas, preconceito
social ou discriminação. Os estudos científicos pouco pesam na definição da
política de combate à criminalidade, apesar de terem desenvolvido métodos mais precisos
para avaliar a influência de certos fatores associados às raízes sociais da
violência urbana.
Atribuí-la à superpopulação dos grandes centros pode ser
precipitado. Nada indica que a agressividade aumenta quando os espaços reservados
a cada indivíduo diminuem. Em Tóquio, apesar da alta densidade demográfica, uma
senhora pode andar pelas ruas à noite sem ser molestada. Pode parecer estranho,
mas experiências realizadas nos Estados Unidos com macacos japoneses e, na
Holanda, com chimpanzés apontaram que, mantidos em cativeiro em espaços diminutos,
esses animais continham os impulsos agressivos. Postos em liberdade, a
agressividade aflorava mais intensa. No pavilhão Cinco do Carandiru, em São
Paulo, o mais lotado da cadeia, o número de assassinatos era infinitamente
menor que os ocorridos em outros pavilhões menos povoados.
A desigualdade social, geralmente, é o argumento mais aceito
para justificar a violência. De fato, a má distribuição de renda pode favorecer
a disseminação da criminalidade. Ninguém discute: sociedades desiguais tendem a
ser mais violentas. Não só a pobreza, mas também a falta de perspectivas podem
induzir a comportamentos agressivos. No entanto, as diferenças sociais não explicam
por que em lugares como a Suécia, em que as desigualdades são pequenas, a
violência cresceu na mesma proporção com que diminuiu nos grandes centros dos
Estados Unidos, onde a concentração de renda se agravou ultimamente. Não explicam
por que, numa mesma família pobre, só alguns desrespeitam as regras de
convivência social, nem por que filhos de gente abastada adotam comportamentos antissociais.
Outro aspecto importante é a atual desestruturação das famílias.
No mundo todo, crescem filhos criados sem apoio paterno. Muitas mães,
especialmente no Brasil, são adolescentes. Estudos mostram que os filhos dessas
jovens apresentam probabilidade maior de abandono, maus-tratos e espancamento
doméstico. Sobrecarregadas, as mães abandonam os estudos, não arranjam emprego
e, obrigadas a arcar com as despesas, veem reduzido o poder aquisitivo de suas
famílias. Além disso, crianças nascidas com maior vulnerabilidade para desenvolver
comportamentos agressivos e criadas por mães despreparadas para educá-las com coerência
estão mais sujeitas a se tornar emocionalmente reativas e impulsivas, condições
que embutem alto risco de violência.
Muitos defendem que a certeza da impunidade torna os indivíduos
mais agressivos. Imaginando que não serão presos nem castigados porque a Justiça
é morosa e os policiais, corruptos, marginais sentem-se à vontade para
transgredir as leis. Embora programas de repressão do tipo “tolerância zero”
tenham surtido resultados em algumas cidades do exterior, eles só se tornaram viáveis
depois da aplicação de reformas estruturais das polícias e da adoção de medidas
severas de combate à corrupção.
Mesmo assim, há quem atribua a redução do número de crimes violentos
nos Estados Unidos à menor taxa de desemprego resultante do desempenho
favorável da economia do país nos últimos anos. A respeito do assunto, dois pesquisadores
da Universidade de Stanford chegaram a uma conclusão surpreendente: a redução
dos crimes violentos que ocorreu em todas as cidades americanas, a partir de
1992, não se deve à prosperidade econômica nem ao trabalho policial. Segundo
eles, analisando os dados demográficos, a única explicação encontrada foi a liberação
do aborto, em 1972, que de forma arrevesada e controversa valorizou a
paternidade responsável.
No entanto, as ideias de impunidade e encarceramento são
indissociáveis. Prender não garante obrigatoriamente reabilitação. Na maioria dos
casos, o criminoso acaba estabelecendo na prisão conexões sólidas com o mundo
do crime e volta a delinquir quando posto em liberdade. E o que dizer dos
criminosos de colarinho branco que raramente são condenados, ou dos dignitários
públicos que deslizam pela trama esgarçada das leis?
Outro fator importante no quadro da violência é a alta concentração
de armamentos em determinadas áreas. A maior parte deles, obtida
ilegalmente, transmite a seus portadores a ilusão de segurança, proteção e
respeito. Para os que dependem dessas armas para enfrentar a polícia ou
quadrilhas rivais, elas são símbolo de força e poder. Em ambos os casos, porém,
podem intensificar as reações violentas e os ferimentos letais.
Ninguém discute que as drogas – o tráfico e o consumo – influem
nos comportamentos violentos, mas é fundamental analisar a revolução que o
crack representou nesse universo. Antes dele, a cocaína era comercializada em
pó, custava caro e era distribuída por pequeno número de traficantes mais velhos.
O crack democratizou o mercado. Os mais velhos, experientes solucionadores de
conflitos, foram substituídos por jovens com tendência a resolver contendas com
mais agressividade e impaciência.
Não se pode, ainda, esquecer o papel da mídia na divulgação de
comportamentos violentos – de inocentes desenhos animados a programas de
mundo-cão, cenas de caça a bandidos, arbitrariedades cometidas por policiais e
revoltas nos presídios. Numa rebelião de presos, uma das primeiras exigências é
a presença da televisão. Demonstração de poder, garantia de proteção ou direito
a alguns minutos de fama? Difícil dizer. Relatório publicado por associações
médicas americanas concluiu que existe “uma conexão causal entre a violência na
mídia e o comportamento agressivo de certas crianças”.
Violência, de fato, é uma doença com múltiplos fatores de risco.
Estudos científicos permitem identificar três deles na formação de
personalidades com maior inclinação ao comportamento agressivo: experiências de
abuso sexual, espancamento, humilhação e desprezo nos primeiros anos de vida; distanciamento
de valores sociais altruísticos, de formação moral ou limites de disciplina;
associação com grupos portadores de comportamento antissocial.
Combater essa doença pressupõe a aplicação de estratégias efetivas de
prevenção e tratamento. Não é fácil construir uma sociedade igualitária que
evite a ruptura dos laços familiares, eduque de forma adequada as crianças,
diga não às drogas, encontre alternativas às cadeias, acabe com as armas e aplique
justiça com isenção. Não existem soluções mágicas. Elas dependem do
envolvimento de cada um de nós na educação das crianças nascidas na periferia
do tecido social. Enquanto não aprendermos a orientar os pais e a oferecer-lhes
medidas preventivas para que evitem ter filhos que não serão capazes de criar,
cabe a nós a responsabilidade de integrar essas crianças na sociedade por meio
de educação formal de bom nível, práticas esportivas e oportunidade de desenvolvimento
artístico.
* Dr. Dráuzio Varella é médico
cancerologista formado pela USP. Além da atividade clínica, foi médico
voluntário na Casa de Detenção e conduz, no rio Negro, na Amazônia, estudos
sobre a atividade farmacológica de várias espécies de plantas brasileiras.
(Revista TV Escola, pág. 42 e 43)
COMENTÁRIOS:
O médico Dráuzio Varella tinha o pleno domínio do texto dissertativo ao
elaborar seu texto Raízes Sociais da Violência.
Perceba que a tese no primeiro parágrafo é feita através de uma
analogia: “violência é uma doença”. A partir daí ele vai tratar a violência
como tal. Logo em seguida, no mesmo parágrafo, ele apresenta duas ideias: a
análise que a sociedade faz e a análise feita por conta dos estudos
científicos, ou seja, o senso comum e a ciência.
Nos parágrafos seguintes, ele vai jogar uma avalanche de argumentos,
por ordem: superpopulação, desigualdade social, desestruturação familiar,
impunidade, concentração de armamentos, drogas e influência da mídia.
É preciso ficar atento, pois nos dois primeiros argumentos Dráuzio
utiliza contra-argumentos para rebater as ideias secundárias: 1) superpopulação
com Tóquio, experiência com macacos e Carandiru; e 2) desigualdade social com
Suécia/EUA e famílias ricas e pobres.
Nos dois últimos parágrafos, Varella reafirma a sua tese “Violência, de
fato, é uma doença”, destrinchando o que dizem os estudos científicos. No
último apresenta a observação final, com críticas e soluções para o problema
enfocado.
A coesão e a coerência do artigo são perfeitas. Os parágrafos sempre
feitos de forma dedutiva, levam a uma amarração das ideias com os conectivos
usados no início de cada parágrafo e entre frases, orações e períodos.
A despeito do tamanho – é um artigo de revista em duas páginas, com
sete argumentos –, é uma estrutura que o vestibulando ou concurseiro deve
utilizar como exemplo, principalmente no que tange aos contra-argumentos (feitos
nos mesmos parágrafos dos argumentos) e também com as citações elaboradas (vide
parágrafos 4, 6 e 10).
Texto nota mil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário