segunda-feira, 7 de maio de 2012

RAÍZES SOCIAS DA VIOLÊNCIA


Dráuzio Varella*

Violência é uma doença epidêmica, contagiosa e de múltiplas causas. A análise que a sociedade costuma fazer dela se baseia em fatores emocionais, quase sempre gerados por crime chocante, falta de segurança nas ruas, preconceito social ou discriminação. Os estudos científicos pouco pesam na definição da política de combate à criminalidade, apesar de terem desenvolvido métodos mais precisos para avaliar a influência de certos fatores associados às raízes sociais da violência urbana.
Atribuí-la à superpopulação dos grandes centros pode ser precipitado. Nada indica que a agressividade aumenta quando os espaços reservados a cada indivíduo diminuem. Em Tóquio, apesar da alta densidade demográfica, uma senhora pode andar pelas ruas à noite sem ser molestada. Pode parecer estranho, mas experiências realizadas nos Estados Unidos com macacos japoneses e, na Holanda, com chimpanzés apontaram que, mantidos em cativeiro em espaços diminutos, esses animais continham os impulsos agressivos. Postos em liberdade, a agressividade aflorava mais intensa. No pavilhão Cinco do Carandiru, em São Paulo, o mais lotado da cadeia, o número de assassinatos era infinitamente menor que os ocorridos em outros pavilhões menos povoados.
A desigualdade social, geralmente, é o argumento mais aceito para justificar a violência. De fato, a má distribuição de renda pode favorecer a disseminação da criminalidade. Ninguém discute: sociedades desiguais tendem a ser mais violentas. Não só a pobreza, mas também a falta de perspectivas podem induzir a comportamentos agressivos. No entanto, as diferenças sociais não explicam por que em lugares como a Suécia, em que as desigualdades são pequenas, a violência cresceu na mesma proporção com que diminuiu nos grandes centros dos Estados Unidos, onde a concentração de renda se agravou ultimamente. Não explicam por que, numa mesma família pobre, só alguns desrespeitam as regras de convivência social, nem por que filhos de gente abastada adotam comportamentos antissociais.
Outro aspecto importante é a atual desestruturação das famílias. No mundo todo, crescem filhos criados sem apoio paterno. Muitas mães, especialmente no Brasil, são adolescentes. Estudos mostram que os filhos dessas jovens apresentam probabilidade maior de abandono, maus-tratos e espancamento doméstico. Sobrecarregadas, as mães abandonam os estudos, não arranjam emprego e, obrigadas a arcar com as despesas, veem reduzido o poder aquisitivo de suas famílias. Além disso, crianças nascidas com maior vulnerabilidade para desenvolver comportamentos agressivos e criadas por mães despreparadas para educá-las com coerência estão mais sujeitas a se tornar emocionalmente reativas e impulsivas, condições que embutem alto risco de violência.
Muitos defendem que a certeza da impunidade torna os indivíduos mais agressivos. Imaginando que não serão presos nem castigados porque a Justiça é morosa e os policiais, corruptos, marginais sentem-se à vontade para transgredir as leis. Embora programas de repressão do tipo “tolerância zero” tenham surtido resultados em algumas cidades do exterior, eles só se tornaram viáveis depois da aplicação de reformas estruturais das polícias e da adoção de medidas severas de combate à corrupção.
Mesmo assim, há quem atribua a redução do número de crimes violentos nos Estados Unidos à menor taxa de desemprego resultante do desempenho favorável da economia do país nos últimos anos. A respeito do assunto, dois pesquisadores da Universidade de Stanford chegaram a uma conclusão surpreendente: a redução dos crimes violentos que ocorreu em todas as cidades americanas, a partir de 1992, não se deve à prosperidade econômica nem ao trabalho policial. Segundo eles, analisando os dados demográficos, a única explicação encontrada foi a liberação do aborto, em 1972, que de forma arrevesada e controversa valorizou a paternidade responsável.
No entanto, as ideias de impunidade e encarceramento são indissociáveis. Prender não garante obrigatoriamente reabilitação. Na maioria dos casos, o criminoso acaba estabelecendo na prisão conexões sólidas com o mundo do crime e volta a delinquir quando posto em liberdade. E o que dizer dos criminosos de colarinho branco que raramente são condenados, ou dos dignitários públicos que deslizam pela trama esgarçada das leis?
Outro fator importante no quadro da violência é a alta concentração de armamentos em determinadas áreas. A maior parte deles, obtida ilegalmente, transmite a seus portadores a ilusão de segurança, proteção e respeito. Para os que dependem dessas armas para enfrentar a polícia ou quadrilhas rivais, elas são símbolo de força e poder. Em ambos os casos, porém, podem intensificar as reações violentas e os ferimentos letais.
Ninguém discute que as drogas – o tráfico e o consumo – influem nos comportamentos violentos, mas é fundamental analisar a revolução que o crack representou nesse universo. Antes dele, a cocaína era comercializada em pó, custava caro e era distribuída por pequeno número de traficantes mais velhos. O crack democratizou o mercado. Os mais velhos, experientes solucionadores de conflitos, foram substituídos por jovens com tendência a resolver contendas com mais agressividade e impaciência.
Não se pode, ainda, esquecer o papel da mídia na divulgação de comportamentos violentos – de inocentes desenhos animados a programas de mundo-cão, cenas de caça a bandidos, arbitrariedades cometidas por policiais e revoltas nos presídios. Numa rebelião de presos, uma das primeiras exigências é a presença da televisão. Demonstração de poder, garantia de proteção ou direito a alguns minutos de fama? Difícil dizer. Relatório publicado por associações médicas americanas concluiu que existe “uma conexão causal entre a violência na mídia e o comportamento agressivo de certas crianças”.
Violência, de fato, é uma doença com múltiplos fatores de risco. Estudos científicos permitem identificar três deles na formação de personalidades com maior inclinação ao comportamento agressivo: experiências de abuso sexual, espancamento, humilhação e desprezo nos primeiros anos de vida; distanciamento de valores sociais altruísticos, de formação moral ou limites de disciplina; associação com grupos portadores de comportamento antissocial.
Combater essa doença pressupõe a aplicação de estratégias efetivas de prevenção e tratamento. Não é fácil construir uma sociedade igualitária que evite a ruptura dos laços familiares, eduque de forma adequada as crianças, diga não às drogas, encontre alternativas às cadeias, acabe com as armas e aplique justiça com isenção. Não existem soluções mágicas. Elas dependem do envolvimento de cada um de nós na educação das crianças nascidas na periferia do tecido social. Enquanto não aprendermos a orientar os pais e a oferecer-lhes medidas preventivas para que evitem ter filhos que não serão capazes de criar, cabe a nós a responsabilidade de integrar essas crianças na sociedade por meio de educação formal de bom nível, práticas esportivas e oportunidade de desenvolvimento artístico.
* Dr. Dráuzio Varella é médico cancerologista formado pela USP. Além da atividade clínica, foi médico voluntário na Casa de Detenção e conduz, no rio Negro, na Amazônia, estudos sobre a atividade farmacológica de várias espécies de plantas brasileiras. (Revista TV Escola, pág. 42 e 43)

COMENTÁRIOS:

O médico Dráuzio Varella tinha o pleno domínio do texto dissertativo ao elaborar seu texto Raízes Sociais da Violência.
Perceba que a tese no primeiro parágrafo é feita através de uma analogia: “violência é uma doença”. A partir daí ele vai tratar a violência como tal. Logo em seguida, no mesmo parágrafo, ele apresenta duas ideias: a análise que a sociedade faz e a análise feita por conta dos estudos científicos, ou seja, o senso comum e a ciência.
Nos parágrafos seguintes, ele vai jogar uma avalanche de argumentos, por ordem: superpopulação, desigualdade social, desestruturação familiar, impunidade, concentração de armamentos, drogas e influência da mídia.
É preciso ficar atento, pois nos dois primeiros argumentos Dráuzio utiliza contra-argumentos para rebater as ideias secundárias: 1) superpopulação com Tóquio, experiência com macacos e Carandiru; e 2) desigualdade social com Suécia/EUA e famílias ricas e pobres.
Nos dois últimos parágrafos, Varella reafirma a sua tese “Violência, de fato, é uma doença”, destrinchando o que dizem os estudos científicos. No último apresenta a observação final, com críticas e soluções para o problema enfocado.
A coesão e a coerência do artigo são perfeitas. Os parágrafos sempre feitos de forma dedutiva, levam a uma amarração das ideias com os conectivos usados no início de cada parágrafo e entre frases, orações e períodos.
A despeito do tamanho – é um artigo de revista em duas páginas, com sete argumentos –, é uma estrutura que o vestibulando ou concurseiro deve utilizar como exemplo, principalmente no que tange aos contra-argumentos (feitos nos mesmos parágrafos dos argumentos) e também com as citações elaboradas (vide parágrafos 4, 6 e 10).
Texto nota mil.

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