(Foucault, Michel. L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao
Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris,
1971. Tradução de Edmundo Cordeiro com a ajuda para a parte inicial do António Bento.)
No
discurso que hoje eu devo fazer, e nos que aqui terei de fazer, durante anos
talvez, gostaria de neles poder entrar sem se dar por isso. Em vez de tomar a
palavra, gostaria de estar à sua mercê e de ser levado muito para lá de todo o
começo possível. Preferiria dar-me conta de que, no momento de falar, uma voz
sem nome me precedia desde há muito: bastar-me-ia assim deixá-la ir, prosseguir
a frase, alojar-me, sem que ninguém se apercebesse, nos seus interstícios, como
se ela me tivesse acenado, ao manter-se, um instante, em suspenso. Assim não
haveria começo; e em vez de ser aquele de onde o discurso sai, estaria antes no
acaso do seu curso, uma pequena lacuna, o ponto do seu possível desaparecimento.
Preferiria
que atrás de mim houvesse (tendo há muito tomado a palavra, dizendo
antecipadamente tudo o que eu vou dizer) uma voz que falasse assim: "Devo
continuar. Eu não posso continuar. Devo continuar. Devo dizer palavras enquanto
as houver. Devo dizê-las até que elas me encontrem. Até elas me dizerem —
estranha dor, estranha falta. Devo continuar. Talvez isso já tenha acontecido.
Talvez já me tenham dito. Talvez já me tenham levado até ao limiar da minha
história, até à porta que se abre para a minha história. Espantar-me-ia que ela
se abrisse."
Há
em muitos, julgo, um desejo semelhante de não ter de começar, um desejo
semelhante de se encontrar, de imediato, do outro lado do discurso, sem ter de
ver do lado de quem está de fora aquilo que ele pode ter de singular, de
temível, de maléfico mesmo. A este querer tão comum a instituição responde de
maneira irónica, porque faz com que os começos sejam solenes, porque os acolhe
num rodeio de atenção e silêncio, e lhes impõe, para que se vejam à distância,
formas ritualizadas.
O
desejo diz: "Eu, eu não queria ser obrigado a entrar nessa ordem incerta
do discurso; não queria ter nada que ver com ele naquilo que tem de peremptório
e de decisivo; queria que ele estivesse muito próximo de mim como uma transparência
calma, profunda, indefinidamente aberta, e que os outros respondessem à minha
expectativa, e que as verdades, uma de cada vez, se erguessem; bastaria apenas
deixar-me levar, nele e por ele, como um barco à deriva, feliz." E a
instituição responde: "Tu não deves ter receio em começar; estamos aqui
para te fazer ver que o discurso está na ordem das leis; que sempre vigiámos o
seu aparecimento; que lhe concedemos um lugar, que o honra, mas que o desarma;
e se ele tem algum poder, é de nós, e de nós apenas, que o recebe."
Mas
talvez esta instituição e este desejo não sejam mais do que duas réplicas a uma
mesma inquietação: inquietação face àquilo que o discurso é na sua realidade
material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação face a essa existência transitória
destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence;
inquietação por sentir nessa actividade, quotidiana e banal porém, poderes e
perigos que sequer adivinhamos; inquietação por suspeitarmos das lutas, das
vitórias, das feridas, das dominações, das servidões que atravessam tantas
palavras em cujo uso há muito se reduziram as suas rugosidades.
Mas
o que há assim de tão perigoso por as pessoas falarem, qual o perigo dos
discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é que está o perigo?
*
É
esta a hipótese que eu queria apresentar, esta tarde, para situar o lugar — ou
talvez a antecâmara — do trabalho que faço: suponho que em toda a sociedade a
produção do discurso é simultaneamente controlada, seleccionada, organizada e
redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel
exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório,
disfarçar a sua pesada, temível materialidade.
É
claro que sabemos, numa sociedade como a nossa, da existência de procedimentos
de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito.
Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que
não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja,
finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objecto, ritual da
circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: jogo de
três tipos de interditos que se cruzam, que se reforçam ou que se compensam,
formando uma grelha complexa que está sempre a modificar-se. Basta-me referir
que, nos dias que correm, as regiões onde a grelha mais se aperta, onde os
quadrados negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da
política: longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade
se desarma e a política se pacifica, é como se o discurso fosse um dos lugares
onde estas regiões exercem, de maneira privilegiada, algumas dos seus mais
temíveis poderes. O discurso, aparentemente, pode até nem ser nada de por aí
além, mas no entanto, os interditos que o atingem, revelam, cedo, de imediato,
o seu vínculo ao desejo e o poder. E com isso não há com que admirarmo-nos: uma
vez que o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é simplesmente o que
manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objecto do desejo; e
porque — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é
aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos.
Há
na nossa sociedade outro princípio de exclusão: não já um interdito, mas uma
partilha e uma rejeição. Penso na oposição da razão e da loucura (folie).
Desde os arcanos da Idade Média que o louco é aquele cujo discurso não pode
transmitir-se como o dos outros: ou a sua palavra nada vale e não existe, não
possuindo nem verdade nem importância, não podendo testemunhar em matéria de
justiça, não podendo autentificar um acto ou um contrato, não podendo sequer,
no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo;
ou, como reverso de tudo isto, e por oposição a outra palavra qualquer, são-lhe
atribuídos estranhos poderes: o de dizer uma verdade oculta, o de anunciar o
futuro, o de ver, com toda a credulidade, aquilo que a sagacidade dos outros
não consegue atingir. É curioso reparar que na Europa, durante séculos, a
palavra do louco, ou não era ouvida, ou então, se o era, era ouvida como uma
palavra verdadeira. Ou caía no nada — rejeitada de imediato logo que proferida;
ou adivinhava-se nela uma razão crédula ou subtil, uma razão mais razoável do
que a razão das pessoas razoáveis. De qualquer modo, excluída ou secretamente
investida pela razão, em sentido estrito, ela não existia. Era por intermédio
das suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; essas palavras eram o
lugar onde se exercia a partilha; mas nunca eram retidas ou escutadas. A nunca
um médico ocorrera, antes do final do século XVIII, saber o que era dito (como
era dito, por que é que era dito isso que era dito) nessa palavra que, não
obstante, marcava a diferença. Todo esse imenso discurso do louco recaía no
ruído; e se se lhe dava a palavra era de modo simbólico, no teatro, onde se
apresentava desarmado e reconciliado, já que aí representava a verdade mascarada.
Dir-me-ão
que hoje tudo isto já acabou ou que está em vias de acabar; que a palavra do
louco já não está do outro lado da partilha; que já tem uma existência e uma
validez; que, pelo contrário, nos coloca de sobreaviso; que procuramos nela um
sentido, o esboço ou as ruínas de uma obra; e que somos capazes de a
surpreender, à palavra do louco, naquilo que nós próprios articulamos, nessa
minúscula fenda por onde aquilo que dizemos nos escapa. Mas uma tamanha atenção
não prova que a antiga partilha não se exerça ainda; basta pensar em toda a
armadura de saber por intermédio da qual nós deciframos essas palavras; basta
pensar na rede de instituições que permite a qualquer um — médico, psicanalista
— escutar essa palavra, e que permite simultaneamente ao paciente trazer, ou
desesperadamente reter, as suas próprias palavras; basta pensar em tudo isso
para suspeitar que a partilha, longe de se ter apagado, se exerce de outra
maneira, através de linhas diferentes, por intermédio de novas instituições e
com efeitos que não são já os mesmos. E mesmo quando o próprio papel do médico
é apenas o de escutar com atenção uma palavra, por fim, livre, é sempre a
partir da manutenção da cesura que se exerce a escuta. Escuta de um discurso
que é investido pelo desejo, e que se julga a si mesmo — pela sua maior
exaltação ou maior angústia — possuído de terríveis poderes. Se para curar os
monstros é necessário o silêncio da razão, basta que ele se mantenha alerta e a
partilha permanece.
Talvez
seja arriscado considerar a oposição do verdadeiro e do falso como um terceiro
sistema de exclusão, a par daqueles de que acabo de falar. Como é que se pode
razoavelmente comparar o constrangimento da verdade com as partilhas referidas,
partilhas que à partida são arbitrárias, ou que, quando muito, se organizam em
torno de contingências históricas; que não são apenas modificáveis, mas estão
em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de
instituições que as impõem e as reconduzem; que, ao fim e ao cabo, não se exercem
sem constrangimento, ou pelo menos sem um pouco de violência.
É
claro que, colocando-nos, no interior de um discurso, ao nível de uma
proposição, a partilha entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem
modificável, nem institucional, nem violenta. Mas, numa outra escala, se nos
pusermos a questão de saber, no interior dos nossos discursos, qual foi, qual
é, constantemente, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos da
nossa história, ou, na sua forma muito geral, qual o tipo de partilha que rege
a nossa vontade de saber, então talvez vejamos desenhar-se qualquer coisa como
um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente
constrangedor).
Partilha
historicamente constituída, por certo. Pois, ainda nos poetas gregos do século
VI, o discurso verdadeiro — no sentido forte e valorizado da palavra —, o
discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, ao qual era
necessário submeter-se, porque reinava, era o discurso pronunciado por quem de
direito e segundo o ritual requerido; era o discurso que dizia a justiça e
atribuía a cada um a sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não
apenas anunciava o que haveria de passar-se, mas contribuía para a sua
realização, obtinha a adesão dos homens e desse modo se entretecia com o
destino. Ora, um século mais tarde, a maior das verdades já não estava naquilo
que o discurso era ou naquilo que fazia, mas sim naquilo que o
discurso dizia: chegou, porém o dia em que a verdade se deslocou do acto
ritualizado de enunciação, eficaz e justo, para o próprio enunciado: para o seu
sentido, a sua forma, o seu objecto, a sua relação à referência. Entre Hesíodo
e Platão uma certa partilha se estabeleceu, separando o discurso verdadeiro e o
discurso falso; nova partilha, uma vez que daí em diante o discurso verdadeiro
deixa de ser o discurso valioso e desejável, uma vez que o discurso verdadeiro
já não é o discurso ligado ao exercício do poder. O sofista é encurralado.
Sem
dúvida que esta partilha histórica deu à nossa vontade de saber a sua forma
geral. Não deixou porém de deslocar-se: as grandes mutações científicas podem
talvez ler-se, por vezes, enquanto consequências de uma descoberta, mas podem
ler-se também como aparecimentos de novas formas da vontade de verdade. Há sem
dúvida uma vontade de verdade no século XIX, que não coincide com a vontade de
saber que caracteriza a cultura clássica, nem pelas formas que põe em jogo, nem
pelos domínios de objectos aos quais se dirige, nem pelas técnicas em que se
apoia. Voltemos um pouco atrás: na viragem do século XVI para o século XVII (e
na Inglaterra sobretudo) apareceu uma vontade de saber que, antecipadamente em
relação aos seus conteúdos actuais, concebia planos de objectos possíveis,
observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de saber que impunha ao
sujeito que conhece (e de algum modo antes de toda a experiência) uma certa
posição, um certo olhar e uma certa função (ver em vez de ler, verificar em vez
de comentar); uma vontade de saber que prescrevia (e de um modo mais geral do
que qualquer instrumento determinado) o nível técnico onde os conhecimentos
deveriam investir-se para serem verificáveis e úteis. Tudo se passa como se a
partir da grande partilha platónica a vontade de verdade tivesse a sua própria
história, que não já a das verdades que constrangem: história dos planos de
objectos a conhecer, história das funções e posições do sujeito que conhece,
história dos investimentos materiais, técnicos, instrumentais do conhecimento.
Ora
esta vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão, apoia-se numa
base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma
espessura de práticas como a pedagogia, claro, o sistema dos livros, da edição,
das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas é
também reconduzida, e de um modo mais profundo sem dúvida, pela maneira como o
saber é disposto numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e,
de certa forma, atribuído. Evoquemos aqui, e a título simbólico somente, o
antigo princípio grego: a aritmética é tratada nas sociedades democráticas,
porque ensina as relações de igualdade, mas a geometria apenas deve ser
ensinada nas oligarquias, dado que demonstra as proporções na desigualdade.
E
creio que esta vontade de verdade, por fim, apoiando-se numa base e numa
distribuição institucionais, tende a exercer sobre os outros discursos —
continuo a falar da nossa sociedade — uma espécie de pressão e um certo poder
de constrangimento. Estou a pensar na maneira como a literatura ocidental teve
de apoiar-se, há séculos a esta parte, no natural, no verosímil, na
sinceridade, e também na ciência — numa palavra, no discurso verdadeiro. E
estou a pensar, igualmente, na maneira como as práticas económicas, codificadas
como preceitos ou receitas, eventualmente até como moral, procuraram, desde o
século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se numa teoria das
riquezas e da produção. Penso ainda na maneira como um todo tão prescritivo
quanto o sistema penal foi encontrar os seus alicerces ou a sua justificação,
em primeiro lugar, claro, numa teoria do direito, e depois, a partir do século
XIX, num saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se na nossa
sociedade a própria palavra da lei só pudesse ter autoridade por intermédio de
um discurso de verdade.
Dos
três grandes sistemas de exclusão que incidem sobre o discurso, a palavra
interdita, a partilha da loucura e a vontade de verdade, foi no terceiro que eu
mais me demorei. Pois é na sua direcção que os primeiros se têm constantemente
encaminhado, há séculos a esta parte; porque, cada vez mais, ele visa tomá-los
a seu cargo, para ao assim os modificar e fundar; porque, se os dois primeiros
se tornam cada vez mais frágeis, mais incertos, na medida em que agora são
atravessados pela vontade de verdade, esta, pelo contrário, cada vez mais se
reforça, tornando-se mais profunda e mais incontornável.
E
no entanto, é sem dúvida dela que menos se fala. Como se a vontade de verdade e
as suas peripécias fossem mascaradas pela própria verdade na sua explicação
necessária. E a razão disso talvez seja esta: se, com efeito, o discurso
verdadeiro já não é, desde os Gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele
que exerce o poder, o que é que, no entanto, está em jogo na vontade de
verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro — o que é que
está em jogo senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, separado do
desejo e liberto do poder pela necessidade da sua forma, não pode reconhecer a
vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade que desde há muito
se nos impôs é tal, que a própria verdade — que a vontade de verdade quer —
mascara a vontade de verdade.
Por
tudo isto, os nossos olhos só vêem uma verdade que é riqueza, fecundidade,
força doce e insidiosamente universal. E, ao invés, não vemos a vontade de
verdade enquanto prodigiosa maquinaria destinada a excluir. Todos aqueles que,
de uma ponta a outra da nossa história, procuraram contornar essa vontade de
verdade, interrogando-a e voltando-a contra a verdade, precisamente onde a
própria verdade procura justificar o interdito e definir a loucura, todos eles,
de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem servir-nos hoje de sinais, soberbos
sem dúvida, para o nosso trabalho.
*
Evidentemente
que há outros procedimentos de controlo e de delimitação do discurso. Aqueles
de que falei até agora exercem-se, de algum modo, a partir do exterior;
funcionam como sistemas de exclusão; dizem respeito sem dúvida à parte do
discurso em que estão implicados o poder e o desejo.
Pode-se,
julgo, isolar outro grupo. Procedimentos internos, dado que são os próprios
discursos a exercer o seu controlo; procedimentos que funcionam sobretudo
enquanto princípios de classificação, de ordenamento, de distribuição, como se
se tratasse, agora, de dominar uma outra dimensão do discurso: a do
acontecimento e a do acaso.
Na
frente, o comentário. Suponho, mas sem estar muito certo disso, que não há
nenhuma sociedade onde não existam narrativas maiores, que se contam, se
repetem, e que se vão mudando; fórmulas, textos, colecções ritualizadas de
discursos, que se recitam em circunstânc ias determinadas; coisas ditas uma vez
e que são preservadas, porque suspeitamos que nelas haja algo como um segredo
ou uma riqueza. Em suma, pode suspeitar-se que há nas sociedades, de um modo
muito regular, uma espécie de desnível entre os discursos: os discursos que
"se dizem" ao correr dos dias e das relações, discursos que se
esquecem no próprio acto que lhes deu origem; e os discursos que estão na
origem de um certo número de novos actos de fala, actos que os retomam, os
transformam ou falam deles, numa palavra, os discursos que, indefinidamente e
para além da sua formulação, são ditos, ficam ditos, e estão ainda por
dizer. Sabemos da sua existência no nosso sistema de cultura: são os textos
religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando pensamos no
seu estatuto, a que se chama "literários"; e numa certa medida
também, os textos científicos.
Está
bem que este desnível não é estável, não é constante, não é absoluto. Não há,
por um lado, a categoria dos discursos fundamentais ou criadores, dada de uma
vez para sempre; e não há, por outro lado, a massa dos outros que repetem,
glosam e comentam. Há muitos textos maiores que se dispersam e desaparecem, e
há comentários que por vezes vêm ocupar o lugar primordial. Mas se é verdade
que os seus pontos de aplicação podem mudar, a função permanece; e o princípio
de um desnível é incessantemente accionado. O apagamento radical deste desnível
não pode ser senão jogo, utopia ou angústia. Jogo do comentário, à maneira de
Borges, comentário que consiste num reaparecimento palavra a palavra (mas desta
vez solene e esperada) daquilo que comenta; e ainda o jogo de uma crítica que
falaria até ao infinito de uma obra inexistente. Sonho lírico de um discurso
que renasce, absolutamente novo e inocente, em cada um dos seus pontos, e que
reaparece, a todo o momento, com toda a frescura, a partir das coisas, dos
sentimentos ou dos pensamentos. Angústia como a de um doente de Janet, para o
qual o menor enunciado era como se fosse uma "palavra do Evangelho",
refúgio de inesgotáveis tesouros de sentido e que merecia ser indefinidamente
retomado, recomeçado, comentado: "Quando penso, dizia ele ao ler ou ao
ouvir, quando penso nessa frase, que foge para a eternidade, e que eu talvez
não tenha ainda compreendido por completo."
Mas
como não ver que se trata também aí de anular um só dos termos da relação e
não, de modo algum, da supressão da própria relação? Relação que se modifica
permanentemente pelo tempo fora; relação que adquire, numa dada época, formas
múltiplas e divergentes; a exegese jurídica é muito diferente (e isto desde há
muito tempo) do comentário religioso; basta uma única obra literária para dar
lugar, simultaneamente, a tipos de discurso muito diferentes: a Odisseia,
enquanto texto primeiro, é repetido, na mesma época, na tradução de Bérard, em
muitas explicações de textos, no Ulisses de Joyce.
De
momento, naquilo a que chamamos globalmente um comentário, quero limitar-me a
indicar que o desnível entre o texto primeiro e o texto segundo desempenha dois
papéis solidários. Por um lado, permite construir (e indefinidamente) novos
discursos : o pendor do discurso primeiro, a sua permanência, o seu estatuto de
discurso sempre reactualizável, o sentido múltiplo ou escondido de que ele
passa por ser o detentor, a reserva ou a riqueza essencial que lhe são
atribuídas, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar. Mas por outro
lado, quaisquer que sejam as técnicas usadas, o comentário não tem outro papel
senão o de dizer finalmente aquilo que estava silenciosamente articulado
no texto primeiro. O comentário deve, num paradoxo que ele desloca sempre mas
de que nunca se livra, dizer pela primeira vez aquilo que já tinha sido dito
entretanto, e repetir incansavelmente aquilo que, porém, nunca tinha sido dito.
O emaranhar indefinido dos comentários é trabalhado do interior pelo sonho de
uma repetição mascarada : no seu horizonte, não há talvez mais nada senão aquilo
que estava no ponto de partida, a simples recitação. O comentário, ao dar conta
das circunstâncias do discurso, exorciza o acaso do discurso : em relação ao
texto, ele permite dizer outra coisa, mas com a condição de que seja esse mesmo
texto a ser dito e de certa forma realizado. Pelo princípio do comentário, a
multiplicidade aberta, os imprevistos, são transferidos daquilo que corria o
risco de ser dito para o número, a forma, a máscara, a circunstância da
repetição. O novo não está naquilo que é dito, mas no acontecimento do seu
retorno.
Julgo
que há um outro princípio de rarefacção do discurso. Que é até certo ponto
complementar do primeiro. Trata-se do autor. Entendido o autor, claro, não como
o indivíduo que fala, o indivíduo que pronunciou ou escreveu um texto, mas como
princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas
significações, como lastro da sua coerência. Este princípio não funciona em
qualquer lugar, nem de maneira constante : existem, à nossa volta, muitos
discursos que circulam sem que o seu sentido ou a sua eficácia estejam em poder
de um autor, a que seriam atribuídos : palavras do dia a dia, que se apagam de
imediato ; decretos ou contratos que têm necessidade de signatários, mas não de
autor, receitas técnicas que se transmitem no anonimato. Mas nos domínios em
que a atribuição a um autor é usual — literatura, filosofia, ciência — vemos
que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel ; na ordem do discurso
científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois
era um indicador de verdade. Considerava-se que o valor científico de uma
proposição estava em poder do seu próprio autor. Desde o século XVIII que esta
função se tem vindo a atenuar no discurso científico : já não funciona senão para
dar um nome a um teorema, a um efeito, a um exemplo, a um síndroma. Em
contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a
função do autor tem vindo a reforçar-se : a todas essas narrativas, a todos
esses poemas, a todos esses dramas ou comédias que circulavam na Idade Média
num anonimato mais ou menos relativo, a todos eles é-lhes agora perguntado (e
exige-se-lhes que o digam) donde vêm, quem os escreveu ; pretende-se que o
autor dê conta da unidade do texto que se coloca sob o seu nome ; pede-se-lhe
que revele, ou que pelo menos traga no seu íntimo, o sentido escondido que os
atravessa ; pede-se-lhe que os articule, com a sua vida pessoal e com as suas
experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é o que dá
à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência,
a sua inserção no real.
Sei
o que me vão dizer: "Mas você fala do autor, que a crítica reinventa
quando já é tarde, quando a morte chegou e já não resta nada senão uma massa emaranhada
de coisas ininteligíveis ; é necessário pôr um pouco de ordem em tudo isso,
imaginar um projecto, uma coerência, uma temática que é procurada na
consciência ou na vida de um autor que, com efeito, é talvez um tanto fictício.
Mas isso não impede que ele não tenha existido, o autor real, esse homem que
irrompe pelo meio de todas as palavras usadas, que trazem em si o seu génio ou
a sua desordem."
Seria
absurdo, claro, negar a existência do indivíduo que escreve e que inventa. Mas
eu penso — e isto pelo menos a partir de uma certa época — que o indivíduo que
começa a escrever um texto, no horizonte do qual gira uma obra possível, retoma
à sua conta a função do autor : o que escreve e o que não escreve, o que
desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra, aquilo que
ele deixa e que cai como as palavras do dia-a-dia, todo esse jogo de diferenças
é prescrito pela função autor, tal como ele a recebe da sua época, ou tal como,
por sua vez, a modifica. Pois ele pode muito bem perturbar a imagem tradicional
que se tem do autor; é a partir de uma nova posição do autor que ele recortará,
em tudo aquilo que ele teria podido dizer, em tudo aquilo que ele diz todos os
dias, a todo o instante, o perfil ainda oscilante da sua obra.
O
comentário limitava o acaso do discurso com o jogo de uma identidade que
tinha a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor
limita esse mesmo acaso com o jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade
e do eu.
Será
necessário também reconhecer naquilo a que se chama as "disciplinas"
— não as ciências — um outro princípio de limitação. Princípio esse também
relativo e móvel. Princípio que permite construir, mas com base num jogo
delimitado.
A
organização das disciplinas opõe-se tanto ao princípio do comentário quanto ao
do autor. Ao do autor, uma vez que uma disciplina se define por um domínio de
objectos, um conjunto de métodos, um corpo de proposições consideradas
verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos :
tudo isto constitui uma espécie de sistema anónimo à disposição de quem quer ou
pode servir-se dele, sem que o seu sentido ou a sua validade estejam ligados ao
seu inventor. Mas o princípio da disciplina opõe-se também ao do comentário :
numa disciplina, diferentemente do comentário, não está suposto à partida que é
um sentido o que deve ser redescoberto, nem está suposto que é uma identidade
que deve ser repetida ; está suposto antes aquilo que é necessário para a
construção de novos enunciados. Para que haja disciplina, é preciso, por
conseguinte, que haja a possibilidade de formular, e de formular
indefinidamente, novas proposições.
Mas
há mais ; e há mais, sem dúvida, para que haja menos : uma disciplina não é a
soma de tudo aquilo que pode ser dito de verdadeiro a propósito de qualquer
coisa ; nem mesmo é o conjunto de tudo aquilo que, a propósito de um mesmo
dado, pode, pelo princípio de coerência ou sistematização, ser aceite. A
medicina não é constituída pela totalidade do que se pode dizer de verdadeiro sobre
a doença ; a botânica não pode ser definida pela soma de todas as verdades que
dizem respeito às plantas. Há duas razões para isso : em primeiro lugar, a
botânica ou a medicina, como qualquer outra disciplina, são feitas tanto de
erros quanto de verdades, erros que não são resíduos ou corpos estranhos, mas
que têm funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes
indistinto do das verdades. Mas por outro lado, para que uma proposição
pertença à botânica ou à patologia, é preciso que ela responda a condições que
em certo sentido são mais estritas e mais complexas do que a pura e simples
verdade: em todo o caso, a outras condições. A proposição deve dirigir-se a um
plano de objectos determinado : a partir do final do século XVII, por exemplo,
para que uma proposição fosse "botânica" era necessário que dissesse
respeito à estrutura visível da planta, ao sistema das suas semelhanças
próximas e longínquas ou à mecânica dos seus fluidos (e já não podia conservar,
como era ainda o caso no século XVI, os seus valores simbólicos, ou o conjunto
das virtudes ou propriedades que lhe eram reconhecidos na Antiguidade). Mas,
não pertencendo a uma disciplina, uma proposição deve utilizar instrumentos
conceptuais ou técnicas de um tipo definido ; a partir do século XIX, uma
proposição deixava de ser uma proposição de medicina, ficava "fora da
medicina" e ganhava um valor de fantasma individual ou de fantasia
popular, se empregasse noções ao mesmo tempo metafóricas, qualitativas e
substanciais (como as de obstrução, líquidos aquecidos ou sólidos ressequidos)
; ela podia, ela devia apelar, pelo contrário, a noções igualmente metafóricas,
mas construídas com base noutro modelo, funcional e fisiológico este (era a
irritação, a inflamação ou a degenerescência dos tecidos). Há mais ainda : para
pertencer a uma disciplina, uma proposição deve poder inscrever-se num certo
tipo de horizonte teórico : basta lembrar que a procura da língua primitiva,
que foi um tema plenamente aceite até ao século XVIII, era suficiente, na
segunda metade do século XIX, para fazer sucumbir qualquer discurso, não digo
no erro, mas na quimera e no devaneio, na pura e simples monstruosidade
linguística.
No
interior dos seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e
falsas ; mas repele para o outro lado das suas margens toda uma teratologia do
saber. O exterior de uma ciência está mais e menos povoado do que julgamos :
certamente que há a experiência imediata, os temas imaginários que trazem e
reconduzem incessantemente crenças sem memória ; mas talvez não haja erros em
sentido estrito, porque o erro não pode surgir e ser avaliado senão no interior
de uma prática definida ; em contrapartida, há monstros que circulam e cuja
forma muda com a história do saber. Numa palavra, uma proposição tem de passar
por complexas e pesadas exigências para poder pertencer ao conjunto de uma
disciplina; antes de se poder dizê-la verdadeira ou falsa, ela deve estar, como
diria Canguilhem, "no verdadeiro".
Perguntámo-nos
muitas vezes como é que os botânicos e os biólogos do século XIX não puderam
ver que era verdadeiro o que Mendel dizia. Mas Mendel falava de objectos, usava
métodos, colocava-se num horizonte teórico que eram estranhos à biologia da sua
época. Sem dúvida que Naudin, antes dele, já tinha avançado a tese segundo a
qual os traços hereditários eram discretos ; porém, por novo ou estranho que
fosse este princípio, ele podia fazer parte — pelo menos a título de enigma —
do discurso biológico. Mendel, por seu lado, constitui o traço hereditário
enquanto objecto biológico absolutamente novo, graças a uma filtragem que nunca
tinha sido utilizada até aí : ele isola o traço hereditário da espécie, isola-o
do sexo que o transmite ; e o domínio em que o observa é a série
indefinidamente aberta das gerações onde ele aparece e desaparece segundo
regularidades estatísticas. Novo objecto, que convoca novos instrumentos
conceituais e novos fundamentos teóricos. Mendel dizia a verdade, mas não
estava "no verdadeiro" do discurso biológico da sua época : não era
com base nessas regras que se formavam os objectos e os conceitos biológicos ;
para que Mendel entrasse no verdadeiro e para que as suas proposições surgissem
(em boa parte) exactas foi necessário toda uma mudança de escala, o
desenvolvimento de todo um novo plano de objectos em biologia. Mendel era um
monstro verdadeiro, o que fazia com que a ciência não pudesse falar dele ; ao
passo que Schleiden, por exemplo, cerca de trinta anos antes, ao negar a
sexualidade vegetal em pleno século XIX, fazia-o segundo as regras do discurso
biológico e com isso formulava apenas um erro disciplinado. Pode sempre
acontecer que se diga o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem ;
mas não se está no verdadeiro sem que se obedeça às regras de uma "polícia"
discursiva que temos de reactivar em cada um dos seus discursos.
A
disciplina é um princípio de controlo da produção do discurso. Fixa-lhe limites
pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualização permanente
das regras.
Tem-se
o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários,
no desenvolvimento de uma disciplina, recursos infinitos para a criação dos
discursos. Talvez, mas não deixam de ser princípios de constrangimento ; e é
provável que não se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se
não tomarmos em consideração a sua função restritiva e constrangedora.
*
Existe,
creio, um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controlo dos
discursos. Não se trata desta vez de dominar os poderes que eles detêm, nem de
exorcizar os acasos do seu aparecimento ; trata-se de determinar as condições
do seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem um certo número de
regras e de não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles.
Rarefacção, agora, dos sujeitos falantes ; ninguém entrará na ordem do discurso
se não satisfizer certas exigências, ou se não estiver, à partida, qualificado
para o fazer. Mais precisamente : as regiões do discurso não estão todas
igualmente abertas e penetráveis ; algumas estão muito bem defendidas (são
diferenciadas e são diferenciantes), enquanto outras parecem abertas a todos os
ventos e parecem estar colocadas à disposição de cada sujeito falante sem
restrições prévias.
Gostaria
de lembrar uma anedota sobre este tema, tão bela que receamos que ela seja
verdadeira. Ela congrega numa única figura todos os constrangimentos do
discurso : os constrangimentos que limitam os seus poderes, os que refreiam os
seus aparecimentos aleatórios, os que seleccionam os sujeitos falantes. No
início do século XVII, o Shogun tinha ouvido dizer que a superioridade
dos europeus — na navegação, no comércio, na política, na arte militar — era
devida ao conhecimento das matemáticas. Quis apoderar-se desse saber tão
precioso. Como lhe tinham falado de um marinheiro inglês que possuía o segredo
desses discursos maravilhosos, fê-lo vir ao seu palácio e aí o reteve. A sós
com ele, recebeu lições. Aprendeu as matemáticas. Guardou para si próprio o
poder destas e viveu até muito velho. Só houve matemáticos japoneses no século
XIX. Mas a anedota não fica por aqui : tem a sua vertente europeia. Com efeito,
a história pretende que o marinheiro inglês, Will Adams, era um autodidacta :
um carpinteiro que, por ter trabalhado num estaleiro naval, tinha aprendido
geometria. Será necessário ver nesta narrativa a expressão de um dos grandes
mitos da cultura europeia? Ao saber monopolizado e secreto da tirania oriental,
a Europa oporia a comunicação universal do conhecimento, o intercâmbio
indeterminado e livre dos discursos.
É
claro que este tema não resiste ao exame. O intercâmbio e a comunicação são
figuras positivas que funcionam no interior de sistemas complexos de restrição
; e sem dúvida que não podem funcionar independentemente destes. A forma mais
superficial e mais visível destes sistemas de restrição é constituída por
aquilo que se pode agrupar sob o nome de ritual ; o ritual define a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo do
diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar determinada posição e
formular determinado tipo de enunciados) ; define os gestos, os comportamentos,
as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso ;
o ritual fixa, por fim, a eficácia, suposta ou imposta, das palavras, o seu
efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os limites do seu valor
constrangedor. Os discursos religiosos, jurídicos, terapêuticos, e em parte
também os políticos, não são dissociáveis desse exercício de um ritual que
determina para os sujeitos falantes, ao mesmo tempo, propriedades singulares e
papéis convenientes.
Com
um funcionamento que é em parte diferente, as "sociedades de
discurso" têm por função conservar ou produzir discursos, mas isso para os
fazer circular num espaço fechado, e para os distribuir segundo regras
estritas, sem que os detentores do discurso sejam lesados com essa
distribuição. Um dos modelos arcaicos disto é-nos dado pelos grupos de rapsodos
que detinham o conhecimento dos poemas a recitar, ou eventualmente a fazer variar
e transformar ; mas ainda que o fim deste conhecimento fosse uma recitação que
era afinal de contas ritual, ele estava — pelos exercícios de memória, muitas
vezes complexos, que implicava — protegido, defendido e conservado num grupo
determinado ; a aprendizagem dava acesso, ao mesmo tempo, a um grupo e a um
segredo que a recitação manifestava, mas não divulgava ; não se trocavam os
papéis entre a fala e a escuta.
Claro
que já não existem semelhantes "sociedades de discurso", com este
jogo ambíguo do segredo e da divulgação. Mas não nos enganemos ; mesmo na ordem
do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e liberto de todo
o ritual, exercem-se ainda formas de apropriação do segredo e de
não-intermutabilidade. Talvez o acto de escrever, tal como está hoje
institucionalizado no livro, no sistema da edição e na personagem do escritor,
seja um acto que se dá numa "sociedade de discurso", difusa talvez,
mas seguramente constrangedora. A diferença do escritor, que é por si próprio
oposta permanentemente à actividade de qualquer outro sujeito falante ou
escritor, o carácter intransitivo que ele atribui ao seu discurso, a
singularidade fundamental que ele, há muito tempo já, confere à
"escrita", a dissimetria afirmada entre a "criação" e
qualquer outra utilização do sistema linguístico, tudo isto manifesta, na sua
formulação, (e tende de resto a reconduzir no jogo das práticas) a existência
de uma certa "sociedade de discurso". Mas existem muitas outras, que
funcionam de outro modo, segundo um outro regime de exclusivos e de divulgação
: pensemos no segredo técnico ou científico, pensemos nas formas de difusão e
de circulação do discurso médico ; pensemos naqueles que se apropriaram do
discurso económico e político.
O
que constitui as doutrinas (religiosas, políticas, filosóficas) é, à primeira
vista, o inverso de uma "sociedade de discurso" : nesta, o número dos
indivíduos falantes, mesmo quando não estava fixado, tendia a ser limitado ; e
era entre eles que o discurso podia circular e ser transmitido. A doutrina,
pelo contrário, tende a difundir-se ; e é pelo pôr em comum de um único
conjunto de discursos, que os indivíduos, tão numerosos quanto o quisermos
imaginar, definem a sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição
requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de uma certa
regra — mais ou menos flexível — de conformidade com os discursos validados ;
se as doutrinas fossem apenas isto, elas não seriam diferentes das disciplinas
científicas, e o controlo discursivo diria respeito unicamente à forma ou ao
conteúdo do enunciado, não ao sujeito falante. Ora, a pertença doutrinal põe em
causa ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito falante, e um por intermédio do
outro. Põe em causa o sujeito falante por intermédio e a partir do enunciado,
como o provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de rejeição que
intervêm quando um sujeito falante formulou um ou vários enunciados
inassimiláveis ; a heresia e a ortodoxia não provêm de uma fanática exageração
dos mecanismos doutrinais; heresia e ortodoxia pertencem-lhes fundamentalmente.
Mas, inversamente, a doutrina põe também em causa os enunciados a partir dos
sujeitos falantes, na medida em que ele vale sempre como sinal, manifestação e
instrumento de uma pertença prévia — pertença de classe, de estatuto social ou
de raça, de nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência
ou de aceitação. A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e
interdita-lhes, por conseguinte, todos os outros ; mas, em reciprocidade,
serve-se de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si, e desse
modo os diferenciar de todos os outros. Ela efectua uma dupla sujeição : dos
sujeitos falantes ao discurso, e dos discursos ao grupo, pelo menos virtual,
dos indivíduos falantes.
Finalmente,
numa escala muito maior, podem reconhecer-se grandes clivagens naquilo a que se
poderia chamar a apropriação social dos discursos. A educação pode muito bem
ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, numa sociedade
como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso ; sabemos no entanto
que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue
as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas
sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de
modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes
trazem consigo.
Eu
sei perfeitamente que a separação que tenho vindo a fazer entre rituais da
fala, sociedades de discurso, grupos doutrinários e apropriações sociais, é
demasiado abstracta. Na maior parte das vezes estão ligados uns aos outros e
são como grandes edifícios que asseguram a distribuição dos sujeitos falantes
nos diferentes tipos de discurso e asseguram a apropriação dos discursos a
certas categorias de sujeitos. Numa palavra, são os grandes procedimentos de
sujeição do discurso. O que é, no fim de contas, um sistema de ensino senão uma
ritualização da fala, senão uma qualificação e uma fixação dos papéis dos sujeitos
falantes ; senão a constituição de um grupo doutrinal, por difuso que seja ;
senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com os seus poderes e os
seus saberes? O que é a "escrita" (a dos "escritores")
senão um sistema de sujeição semelhante, que assume talvez formas um pouco
diferentes, mas em que as grandes decomposições são análogas? Será que o
sistema jurídico, o sistema institucional da medicina, também eles, pelo menos
em alguns dos seus aspectos, não são sistemas semelhantes de sujeição do
discurso?
*
Pergunto-me
se um certo número de temas da filosofia não vieram responder a estes jogos de
limitação e exclusão, e, talvez também, reforçá-los.
Vieram
responder-lhes, primeiro, ao proporem uma verdade ideal enquanto lei do
discurso e uma racionalidade imanente enquanto princípio do seu encadeamento, e
também ao reconduzirem uma ética do conhecimento que só promete a verdade ao
desejo da própria verdade e ao poder de a pensar.
E
vieram reforçá-los por uma denegação que incide, desta vez, sobre a realidade
específica do discurso em geral.
Depois
de os jogos e o comércio dos sofistas terem sido excluídos, depois de, com
maior ou menor segurança, se terem anulado os seus paradoxos, parece que o
pensamento ocidental esteve sempre de guarda para que o discurso ocupasse o
mais pequeno espaço possível entre o pensamento e a palavra; esteve de guarda
para que esse discorrer entre pensar e falar surgisse apenas como um certo
legado ; um pensamento que estaria revestido com os seus signos e que se tornaria
visível pelas palavras, ou seriam as próprias estruturas da língua em acção,
inversamente, que produziriam um efeito de sentido.
Esta
elisão da realidade do discurso no pensamento filosófico, muito antiga, assumiu
muitas formas no decurso da história. Voltámos a encontrá-la recentemente em
vários temas que nos são familiares.
É
possível que o tema do sujeito fundador permita elidir a realidade do discurso.
O sujeito fundador, com efeito, está encarregue de animar directamente com as
suas pretensões as formas vazias da língua; é ele que, ao atravessar a
espessura ou a inércia das coisas vazias, capta, na intuição, o sentido que se
encontra aí depositado ; é ele igualmente que, para além do tempo, funda
horizontes de significação que a história em seguida só terá de explicitar,
horizontes onde as proposições, as ciências, as unidades dedutivas encontrarão
no fim de contas o seu fundamento. Na sua relação com o sentido, o sujeito
fundador dispõe de sinais, de marcas, de vestígios, de letras. Mas para os manifestar
não tem necessidade de passar pela instância singular do discurso.
O
tema que combina com este, o tema da experiência originária, desempenha um
papel análogo. Supõe que, ainda antes da experiência se ter assenhoreado de si
mesma na forma de um cogito, haveriam significações prévias, no rés da
experiência, já ditas, de certa forma, que percorreriam o mundo, o disporiam à
nossa volta e o abririam desde logo a uma espécie de primitivo reconhecimento.
A possibilidade de falar do mundo, de falar dentro dele, de o designar e de o
nomear, de o julgar e de finalmente o conhecer na forma da verdade, tudo isso
teria o seu fundamento, para nós, numa cumplicidade primeira com ele. Se o
discurso, na verdade, existe, então, na sua legitimidade, o que é que pode ele
ser senão uma discreta leitura? As coisas murmuram já um sentido que a nossa
linguagem apenas tem de erguer ; e a linguagem, desde o seu projecto mais
rudimentar, fala-nos de um ser do qual ela seria a nervura.
Creio
que o tema da mediação universal é também uma maneira de elidir a realidade do
discurso. E isto apesar da aparência. Pois parece que, à primeira vista,
encontrando-se por toda a parte o movimento de um logos que eleva as
singularidades até ao conceito e que permite à consciência imediata revelar,
finalmente, toda a racionalidade do mundo, é o próprio discurso que colocamos
no centro da especulação. Mas este logos, a bem dizer, é feito de um
discurso já dado, ou, em vez disso, são as próprias coisas e os acontecimentos
que se tornam discurso, de modo insensível, ao revelarem o segredo da sua
própria essência. O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que
está sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode tomar a
forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso se pode dizer a
propósito de tudo, é porque todas as coisas que manifestaram e ofereceram o seu
sentido podem reentrar na interioridade silenciosa da consciência de si.
Por
conseguinte, quer seja numa filosofia do sujeito fundador, numa filosofia da
experiência originária ou numa filosofia da mediação universal, o discurso não
passa de um jogo, jogo de escrita no primeiro caso, de leitura no segundo, de
intercâmbio no terceiro caso — e este intercâmbio, esta leitura e esta escrita
somente põem em acção os signos. Na sua realidade, ao ser colocado na ordem do
significante, o discurso anula-se.
Aparentemente,
que civilização respeitou mais o discurso do que a nossa? Onde é que mais e
melhor se honrou o discurso? Onde é que, ao que parece, mais radicalmente se
libertou o discurso dos seus constrangimentos e se universalizou? Ora,
parece-me que sob esta aparente veneração do discurso, sob esta aparente
logofilia, esconde-se uma espécie de temor. Tudo se passa como se os
interditos, as barragens, as entradas e os limites do discurso tivessem sido
dispostos de maneira a que, ao menos em parte, a grande proliferação do
discurso seja dominada, de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua
parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que
esquivam aquilo que é mais incontrolável ; tudo se passa como se se tivesse
mesmo querido apagar as marcas da sua irrupção nos jogos do pensamento e da
língua. Há sem dúvida na nossa sociedade, e imagino que em todas as outras, com
base em perfis e decomposições diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie
de temor surdo por esses acontecimentos, por essa massa de coisas ditas, pelo
surgimento de todos esses enunciados, por tudo o que neles pode haver de
violento, de descontínuo, de batalhador, de desordem também e de perigoso, por
esse burburinho incessante e desordenado do discurso.
E
se quisermos — não digo eliminar esse temor — mas analisar as suas condições, o
seu jogo e os seus efeitos, é preciso, creio, resolvermo-nos a tomar três
decisões, em relação às quais o nosso pensamento, hoje, resiste um pouco, e que
correspondem aos três grupos de funções que acabo de mencionar : interrogar a
nossa vontade de verdade ; restituir ao discurso o seu carácter de
acontecimento ; finalmente, abandonar a soberania do significante.
*
São
estas as tarefas, ou antes, alguns temas que orientam o trabalho que gostaria
de fazer aqui nos próximos anos. Podemos de imediato assinalar certas
exigências de método que eles convocam.
Em
primeiro lugar, um princípio de inversão: onde julgamos reconhecer,
segundo a tradição, a fonte dos discursos, onde julgamos reconhecer o princípio
da sua fusão e da sua continuidade, nessas figuras que parecem desempenhar um
papel positivo, como a do autor, a da disciplina, a da vontade de verdade, é
necessário reconhecer nelas, em vez disso, o jogo negativo de um recorte e de
uma rarefacção do discurso.
Mas,
uma vez desvendados os princípios de rarefacção, uma vez que os deixámos de
considerar como instância fundamental e criadora, o que é que se descobre
debaixo deles? Será necessário admitir a plenitude virtual de um mundo de
discursos ininterruptos? É aqui que é necessária a intervenção de outros
princípios de método.
Um
princípio de descontinuidade: que haja sistemas de rarefacção não quer
dizer que aquém deles, ou para-além deles, reine um grande discurso ilimitado,
contínuo e silencioso, discurso que, por via desses sistemas, se encontraria
reprimido ou recalcado, e que teríamos de reerguer, restituindo-lhe a palavra.
Não é necessário imaginar um não dito ou um impensado que percorre e entrelaça
o mundo com todas as suas formas e todos os seus acontecimentos, o qual
teríamos de articular, ou, finalmente, pensar. Os discursos devem ser tratados
como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que
também se ignoram ou se excluem.
Um
princípio de especificidade: não dissolver o discurso num jogo de
significações prévias ; não imaginar que o mundo nos mostra uma face legível
que apenas teríamos de decifrar ; ele não é cúmplice do nosso conhecimento ;
não há uma providência pré-discursiva que o volte para nós. É necessário
conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, em todo o caso
como uma prática que lhes impomos ; e é nessa prática que os acontecimentos do
discurso encontram o princípio da sua regularidade.
Quarta
regra, a da exterioridade: não ir do discurso até ao seu núcleo interior
e escondido, até ao centro de um pensamento ou de uma significação que nele se
manifestasse ; mas, a partir do próprio discurso, do seu aparecimento e da sua
regularidade, ir até às suas condições externas de possibilidade, até ao que dá
lugar à série aleatória desses acontecimentos e que lhes fixa os limites.
Quatro
noções devem servir, por conseguinte, de princípio regulador à análise: a de
acontecimento, a de série, a de regularidade, a de condição de possibilidade.
Vemos que estas noções estão em oposição, termo a termo, a outras: o
acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade, e a
condição de possibilidade à significação. Estas quatro últimas noções
(significação, originalidade, unidade, criação) têm dominado, de uma maneira
geral, a história tradicional das ideias, na qual, de comum acordo, se procura
o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca
da originalidade individual e o tesouro indeterminado das significações
ocultas.
Acrescentarei
apenas duas observações. Uma diz respeito à história. Credita-se frequentemente
a história contemporânea pelo facto de ter retirado os privilégios outrora
concedidos ao acontecimento singular e de ter feito aparecer as estruturas da
longa duração. Certamente. Mas mesmo assim não estou certo de que o trabalho
dos historiadores tenha sido feito precisamente nessa direcção. Ou antes, não
penso que haja uma razão inversa entre a notação do acontecimento e a análise
da longa duração. Parece que, pelo contrário, ao apertar até ao extremo o
caroço do acontecimento, ao conduzir o poder de resolução da análise histórica
até aos preços dos comestíveis, até aos actos notariais, até aos registos de
paróquia, até aos registos portuários analisados ano a ano, semana a semana,
foi assim que se viram despontar, para-além das batalhas, dos decretos, das
dinastias ou das assembleias, os fenómenos espessos de alcance secular ou
plurissecular. A história, no modo como é praticada hoje em dia, não se afasta
dos acontecimentos, pelo contrário, ela alarga-lhes incessantemente o campo ;
descobre incessantemente novas camadas, mais superficiais ou mais profundas ;
isola incessantemente conjuntos novos, em que os acontecimentos são por vezes
numerosos, densos e substituíveis, e por vezes raros e decisivos : desloca-se
das variações quase quotidianas dos preços até às inflações seculares. Mas o importante
é que a história não considere um acontecimento sem definir a série de que ele
faz parte, sem especificar o modo de análise de que esta série depende, sem
procurar conhecer a regularidade dos fenómenos e os limites de probabilidade da
sua emergência, sem se interrogar sobre as variações, as inflexões e o
comportamento da curva, sem determinar a condições de que elas dependem. É
claro que há já muito tempo que a história não procura compreender os
acontecimentos pelo jogo das causas e dos efeitos na unidade informe de um
grande devir, vagamente homogéneo ou rigidamente hierarquizado ; mas não o faz
para, em vez disso, encontrar estruturas anteriores, estranhas, hostis ao
acontecimento. Fá-lo para estabelecer as diversas séries, entrecruzadas, muitas
vezes divergentes mas não autónomas, que permitem circunscrever o
"lugar" do acontecimento, as margens do seu acaso, as condições do
seu aparecimento. As noções fundamentais que agora se impõem não são as da
consciência e da continuidade (com os problemas da liberdade e da causalidade
que lhes são correlativos), já não são as do signo e da estrutura. São as do
acontecimento e da série, com o jogo de noções que lhes estão ligadas ;
regularidade, acaso, descontinuidade, dependência, transformação ; é por intermédio
deste conjunto de noções que esta análise do discurso se articula com o
trabalho dos historiadores e de maneira nenhuma com a temática tradicional que
os filósofos de ontem tomam ainda por história "viva".
Mas
é por isso também que esta análise coloca problemas filosóficos, ou teóricos,
provavelmente temíveis. Se os discursos devem ser tratados em primeiro lugar
enquanto conjuntos de acontecimentos discursivos, qual o estatuto que é preciso
dar à noção de acontecimento, que muito raramente foi tida em consideração
pelos filósofos? Claro que o acontecimento não é nem substância nem acidente,
nem qualidade, nem processo ; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Mas,
mesmo assim, de modo nenhum o acontecimento é imaterial ; é sempre ao nível da
materialidade que ele adquire efeito, que ele é efeito ; e consiste, tem o seu
lugar, na relação, na coexistência, na dispersão, no recorte, na acumulação, na
selecção de elementos materiais ; o acontecimento não é nem o acto nem a
propriedade de um corpo ; produz-se como efeito de uma dispersão material, e
produz-se numa dispersão material. Digamos que a filosofia do acontecimento
deveria encaminhar-se na direcção, à primeira vista paradoxal, de um
materialismo do incorporal.
Por
outro lado, se os acontecimentos discursivos devem ser tratados segundo séries
homogéneas mas descontínuas umas em relação às outras, qual o estatuto que é
necessário dar a este descontínuo? Não se trata, bem entendido, nem da sucessão
de instantes no tempo, nem da pluralidade dos diversos sujeitos pensantes ;
trata-se de cesuras que quebram o instante e o dispersam numa pluralidade de
posições e de funções possíveis. Esta descontinuidade atinge e invalida as mais
pequenas unidades tradicionalmente reconhecidas ou as que menos facilmente são
contestadas: o instante e o sujeito. E, num nível inferior a essas unidades,
independentemente delas, é preciso conceber relações entre as séries
descontínuas que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade) numa (ou
várias) consciência ; é preciso elaborar — fora das filosofias do sujeito e do
tempo — uma teoria das sistematizações descontínuas. Finalmente, se é verdade
que estas séries discursivas e descontínuas têm, cada uma delas, dentro de
certos limites, a sua regularidade, sem dúvida que já não é possível
estabelecer, entre os elementos que as constituem, vínculos de causalidade
mecânica ou de necessidade ideal. É preciso aceitar, na produção dos
acontecimentos, a introdução do acaso como categoria. Mais uma vez se sente aí
a ausência de uma teoria que permita pensar as relações do acaso com o
pensamento.
De
modo que o pequeno desnível que nos propomos introduzir e fazer actuar na
história das ideias, e que consiste em tratar dos discursos enquanto séries
regulares e distintas de acontecimentos e não em tratar das representações que
possam existir atrás dos discursos, nesse pequeno desnível, receio reconhecer
qualquer coisa como uma pequena (e odiosa talvez) maquinaria que permite
introduzir na própria raiz do pensamento o acaso, o descontínuo e
a materialidade. Triplo perigo que uma certa forma de história procura
conjurar narrando o contínuo desdobrar de uma necessidade ideal. Três noções
que deverão permitir ligar a história dos sistemas de pensamento à prática dos
historiadores. Três direcções que o trabalho de elaboração teórica deverá
seguir.
*
Ao
seguir estes princípios e ao ater-me a este horizonte, as análises que me
proponho fazer dispõem-se em duas perspectivas. De um lado, a perspectiva
"crítica", que põe em acção o princípio de inversão : procurar
distinguir as formas de exclusão, de limitação e de apropriação a que me referi
atrás ; mostrar como é que se formaram, a que necessidades vieram responder,
como é que se modificaram e deslocaram, qual o constrangimento que exerceram efectivamente,
em que medida é que foram modificadas. De outro lado, a perspectiva
"genealógica", que põe em acção os outros três princípios: como é que
se formaram as séries de discurso, se por intermédio, ou com o apoio, ou apesar
dos sistemas de exclusão ; qual foi a norma específica de cada série e quais
foram as suas condições de aparecimento, de crescimento, de variação.
A
perspectiva crítica em primeiro lugar. Um primeiro grupo de análises poderia
incidir naquilo que designei como funções de exclusão. Estudei anteriormente
uma dessas funções num período determinado : tratava-se da partilha entre a
loucura e a razão na época clássica. Mais tarde, poderemos tentar analisar um
sistema de interdito de linguagem : aquele que diz respeito à sexualidade,
desde o século XVI até ao século XIX ; de forma alguma se trataria de ver como
é que esse sistema desapareceu progressivamente — e felizmente ; mas como é que
ele se deslocou e rearticulou desde a prática da confissão, em que as condutas
interditas eram nomeadas, classificadas e hierarquizadas, e da maneira mais
explícita possível, até ao aparecimento, muito tímido no início, lento, da
temática sexual na medicina e na psiquiatria do século XIX; certamente que
estas demarcações são ainda um pouco simbólicas, mas pode-se desde já assegurar
que as divisões não são aquelas em que é hábito acreditar e que os interditos
não tiveram sempre o lugar que se imagina.
No
imediato, gostaria de deter-me no terceiro sistema de exclusão. Considerá-lo-ei
de duas maneiras. Por um lado, gostaria de descobrir como é que foi feita esta
escolha da verdade e também como é que ela foi repetida, reconduzida, deslocada
— uma verdade no interior da qual nós estamos retidos, mas que é por nós
incessantemente renovada ; deter-me-ei inicialmente na época da sofística e do
seu início com Sócrates, ou pelo menos com a filosofia platónica, para ver como
é que o discurso eficaz, o discurso ritual, o discurso que detém poderes e
perigos, como é que ele se orientou pouco a pouco na direcção de uma partilha
entre discurso verdadeiro e discurso falso. Deter-me-ei em seguida na viragem
do século XVI para o século XVII, na época em que apareceu, na Inglaterra
sobretudo, uma ciência do olhar, da observação, do relato, uma certa filosofia
natural sem dúvida inseparável do estabelecimento de novas estruturas
políticas, inseparável também da ideologia religiosa : uma nova forma de
vontade de saber, seguramente. Finalmente, o terceiro ponto de referência será
o início do século XIX, com os grandes actos fundadores da ciência moderna, a
formação de uma sociedade industrial e a ideologia positivista que a acompanha.
Três cortes na morfologia da nossa vontade de saber ; três etapas do nosso
filistinismo.
Gostaria
também de retomar a mesma questão, mas sob um ângulo completamente diferente :
medir o efeito do discurso com pretensões científicas — o discurso médico, o
discurso psiquiátrico, o discurso sociológico também — sobre o conjunto de
práticas e discursos prescritíveis que constitui o sistema penal. O estudo dos exames
psiquiátricos e do seu papel na penalidade servirá de ponto de partida e de
material de base para esta análise.
É
ainda nesta perspectiva crítica, mas num outro nível, que pode ser feita a
análise dos procedimentos de limitação dos discursos, dos quais designei há
pouco o princípio do autor, o princípio do comentário e o da disciplina.
Pode-se pensar, nesta perspectiva, num certo número de estudos. Penso, por
exemplo, numa análise que incidiria na história da medicina do século XVI ao
século XIX ; não se trataria tanto de assinalar as descobertas feitas ou os
conceitos utilizados, mas de apurar como é que os princípios do autor, do
comentário e da disciplina actuaram na construção do discurso médico e em todas
as instituições que o suportam, o transmitem e o reforçam ; procurar saber como
é que se exerceu o princípio do grande autor : Hipócrates, Galeno, claro, mas
também Paracelso, Sydenham ou Boerhaave ; como é que se exerceu — e até tarde,
no século XIX — a prática do aforismo e do comentário, como é que essa prática
foi pouco a pouco substituída pela prática do próprio caso a analisar, pela
recolha de casos, pela aprendizagem clínica sobre um caso concreto ; e
finalmente, qual o modelo em que a medicina procurou constituir-se como
disciplina, apoiando-se primeiro na história natural, depois na anatomia e na
biologia.
Poderemos
também procurar ver a maneira como a crítica e a história literárias dos
séculos XVIII e XIX constituíram a personagem do autor e a figura da obra,
utilizando, modificando e deslocando os processos da exegese religiosa, da
crítica bíblica, da hagiografia, das "vidas" históricas ou lendárias,
da autobiografia e das memórias. E será também necessário, um dia, estudar o
papel que Freud desempenha no saber psicanalítico, certamente muito diferente
do de Newton na Física (e de todos os fundadores de disciplina), muito
diferente também do papel que pode desempenhar um autor no campo do discurso
filosófico (mesmo que esteja, como Kant, na origem de uma nova maneira de
filosofar).
São
alguns dos projectos quanto ao aspecto crítico da tarefa, quanto à análise das
instâncias de controlo discursivo. Em relação ao aspecto genealógico, este diz
respeito à formação efectiva dos discursos, seja no interior dos limites do
controlo, seja no exterior deles, seja, o mais das vezes, de um e de outro lado
da delimitação. A crítica analisa os processos de rarefacção, mas também de
reagrupamento e unificação dos discursos ; a genealogia estuda a sua formação,
que é simultaneamente dispersa, descontínua e regular. A bem dizer, estas duas
tarefas não são nunca totalmente separáveis ; não há, de um lado, as formas de
rejeição, de exclusão, de reagrupamento ou de atribuição ; e depois, do outro
lado, num nível mais profundo, o brotar espontâneo dos discursos, que,
imediatamente antes ou depois da sua manifestação, são submetidos à selecção e
ao controlo (é o que sucede, por exemplo, quando uma disciplina ganha a forma e
o estatuto de discurso científico) ; e inversamente, as figuras de controlo
podem formar-se no interior de uma formação discursiva (como a crítica
literária enquanto discurso constitutivo do autor) : toda a tarefa crítica,
interrogando as instâncias de controlo, deve ao mesmo tempo analisar as
regularidades discursivas por intermédio das quais aquelas se formam ; e toda a
descrição genealógica deve ter em conta os limites actuantes nas formações
reais. Entre a tarefa crítica e a tarefa genealógica, a diferença não está
tanto no objecto ou no domínio, mas no ponto a atacar, na perspectiva e na delimitação.
Referi-me
há pouco a um possível estudo : o dos interditos que atingem o discurso da
sexualidade. Em todo o caso, seria difícil e abstracto levar a cabo este estudo
sem analisar o conjunto dos discursos literários, religiosos ou éticos,
biológicos e médicos, e jurídicos igualmente, discursos onde se trate da
sexualidade, ou onde ela se encontre nomeada, descrita, metaforizada,
explicada, julgada. Estamos muito longe de ter constituído um discurso unitário
e regular sobre a sexualidade ; talvez nunca conseguiremos atingir isso e
talvez não seja nessa direcção que nos dirigimos. Pouco importa. Os interditos
não têm a mesma forma e não funcionam da mesma maneira no discurso literário e
no discurso da medicina, no discurso da psiquiatria ou no discurso da direcção
de consciência. E, inversamente, estas diferentes regularidades discursivas não
reforçam, não contornam ou não deslocam da mesma maneira os interditos. Por
conseguinte, o estudo só se poderá fazer com base nas pluralidades de séries
onde os interditos vêm intervir, e que, pelo menos em parte, são diferentes em
cada série.
Poderemos
considerar também as séries de discursos que no século XVI e XVII eram
concernentes à riqueza e à pobreza, à moeda, à produção, ao comércio. Aí, temos
de haver-nos com enunciados muito heterogéneos, formulados pelos ricos e pelos
pobres, pelos sábios e pelos ignorantes, pelos protestantes ou pelos católicos,
pelos administradores reais, pelos comerciantes ou pelos moralistas. Cada qual
tem a sua forma de regularidade, e igualmente os seus sistemas de
constrangimentos. Nenhum de entre eles prefigura exactamente essa outra forma
de regularidade discursiva que que irá assumir o aspecto de uma disciplina e
que se chamará "análise das riquezas" e depois "economia
política". Foi no entanto a partir desses sistemas de constrangimentos que
se formou uma nova regularidade, a qual retomou ou excluíu, justificou ou
afastou alguns dos seus enunciados.
Pode-se
pensar também num estudo que incidiria nos discursos concernentes à hereditariedade
e que se podem encontrar repartidos ou dispersos, até ao início do século XX,
em disciplinas, observações, técnicas e receitas diversas ; tratar-se-ia de
mostrar qual o jogo de articulações por intermédio do qual essas séries se
vieram a recompor na figura, epistemologicamente coerente e reconhecida pela
instituição, da genética. É esse trabalho que tem vindo a ser realizado por
François Jacob, com um brilho e uma ciência inigualáveis.
As
descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar, apoiar-se umas
nas outras e completar-se. A parte crítica da análise prende-se com os sistemas
de envolvimento do discurso ; ela visa assinalar e distinguir esses princípios
de prescrição, de exclusão, de raridade do discurso. Digamos, jogando com as
palavras, que ela põe em prática uma aplicada desenvoltura. A parte genealógica
da análise prende-se, pelo contrário, com as séries da formação efectiva do
discurso : visa captá-lo no seu poder de afirmação, e não entendo com isso um
poder que estaria em oposição ao poder de negar, mas o poder de constituir
domínios de objectos, em relação aos quais se poderá afirmar ou negar
proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos positividades a esses domínios de
objectos ; e digamos, jogando segunda vez com as palavras, que se o estilo
crítico era o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um
positivismo feliz.
Em
todo o caso, há pelo menos uma coisa que deve ser sublinhada : assim entendida,
a análise do discurso não vai revelar a universalidade de um sentido, mas
trazer à luz do dia a raridade que é imposta, e com um poder fundamental de
afirmação. Raridade e afirmação, raridade da afirmação — e de maneira nenhuma
uma generosidade contínua do sentido ou uma monarquia do significante.
E
que os que têm lacunas de vocabulário venham agora dizer — se isso lhes soa
melhor e tanto mais quanto não lhes diz respeito — que isto é estruturalismo.
*
Se
não tivesse a ajuda de modelos e outros apoios, sei que não teria podido levar
a cabo estas investigações de que procurei apresentar-vos o esboço. Julgo dever
muito a Dumézil, uma vez que foi ele que me incitou ao trabalho numa idade em
que eu pensava ainda que escrever era um prazer. Mas devo muito também à sua
obra ; que ele me perdoe se me afastei do seu sentido ou se me desviei do rigor
dos seus textos, que hoje nos dominam ; foi ele que me ensinou a analisar a
economia interna de um discurso de forma completamente diferente da exegese
tradicional ou do formalismo linguístico; foi ele que me ensinou a assinalar,
pelo jogo das comparações, de um discurso a outro, o sistema das correlações
funcionais ; foi ele que me ensinou a descrever as transformações de um
discurso e as relações com a instituição. Se pretendi aplicar um método
semelhante a discursos diferentes dos discursos lendários ou míticos, essa
ideia veio-me sem dúvida por ter diante dos olhos os trabalhos dos
historiadores das ciências, e sobretudo os de Canguilhem ; é a ele que eu devo
a compreensão de que a história da ciência não se detém forçosamente na
alternativa : ou crónica das descobertas, ou descrição das ideias e das
opiniões que rodeiam a ciência pelo lado da sua génese indecisa ou pelo lado
das suas consequências exteriores ; mas que se pode, que se deve fazer a
história da ciência enquanto um todo simultaneamente coerente e
transformacional de modelos teóricos e de instrumentos conceptuais.
Mas
penso que a minha dívida, em grande parte, é em relação a Jean Hyppolite. Sei
que aos olhos de muitos a sua obra está subordinada ao reino de Hegel, e que a
nossa época, quer pela lógica ou pela epistemologia, quer por Marx ou por
Nietzsche, procura escapar a Hegel : e aquilo que há pouco procurei dizer a
propósito do discurso é muito infiel ao logos hegeliano.
Mas
para que se escape realmente a Hegel é necessário que se aprecie exactamente o
que nos custa esse afastamento ; é necessário que se saiba até onde,
insidiosamente talvez, ele se aproximou de nós ; é necessário que se saiba o
que há ainda de hegeliano naquilo que nos permite pensar contra Hegel ; e é
necessário que se avalie em que medida é que a nossa acção contra Hegel não
será talvez ainda uma armadilha que o próprio Hegel nos coloca e no termo da
qual ele nos espera, imóvel, noutro lugar.
Ora,
se são muitos os que estão em dívida para com J. Hyppolite, é porque ele
percorreu de modo infatigável — para nós, antes de nós — esse caminho pelo qual
nos separamos de Hegel, pelo qual nos afastamos, e pelo qual somos reconduzidos
a ele de outra maneira, e depois somos novamente forçados a deixá-lo.
J.
Hyppolite tinha tido o cuidado, em primeiro lugar, de dar uma presença a essa
grande sombra de Hegel, sombra um tanto fantasmagórica, que vagava desde o
século XIX e com a qual nos debatíamos obscuramente. Foi com uma tradução, a
tradução da Fenomenologia do Espírito, que J. Hyppolite deu a Hegel essa
presença ; e que Hegel está presente nesse texto em francês, prova-o a consulta
que foi feita pelos alemães, procurando compreender melhor aquilo em que se
tornava — num instante, pelo menos — a versão alemã.
J.Hyppolite
procurou e percorreu todas as saídas deste texto, como se a sua preocupação
fosse esta: pode-se ainda filosofar ali onde Hegel já não é possível? Pode
ainda existir uma filosofia que não seja hegeliana? Aquilo que não é hegeliano
no nosso pensamento é necessariamente não-filosófico? E aquilo que é
anti-filosófico é forçosamente não-hegeliano? Quanto a essa presença de Hegel
que J. Hyppolite nos ofereceu, ele não procurou apenas fazer-nos a sua
descrição histórica e meticulosa: pretendia também fazer dela um esquema de
experiência da modernidade (é possível pensar à maneira hegeliana as ciências,
a história, a política e o sofrimento de todos os dias?), e pretendia fazer da
nossa modernidade, inversamente, a experiência do hegelianismo e, nesse passo,
da filosofia. Para Hyppolite, a relação com Hegel era o lugar de uma
experiência, de um afrontamento em que nunca há a certeza de que a filosofia
saia vencedora. Ele não se servia do sistema hegeliano como se se tratasse de
um universo de certeza ; via nele o risco extremo da filosofia.
Daí,
penso eu, os deslocamentos que operou, não digo no interior da filosofia
hegeliana, mas sobre sobre ela, e sobre a filosofia tal como Hegel a concebia ;
daí também toda uma inversão de temas. Em vez de conceber a filosofia enquanto
totalidade que finalmente é capaz de se pensar a si própria e de se reapropriar
no movimento do conceito, J.Hyppolite fazia filosofia tendo como fundo um
horizonte infinito, uma tarefa sem termo : levantando-se sempre cedo, a sua filosofia
nunca estava à beira de se concluir ao fim do dia. Tarefa sem termo, por
conseguinte, tarefa sempre recomeçada, votada à forma e ao paradoxo da
repetição : a filosofia, para J.Hyppolite, enquanto pensamento inacessível da
totalidade, era o que podia haver de repetível na extrema irregularidade da
experiência ; era o que se dá e se subtrai, enquanto questão que é
incessantemente retomada na vida, na morte, na memória : era desse modo que o
tema hegeliano da realização da consciência de si era transformado num tema da
interrogação repetitiva. Mas, dado ser repetição, a filosofia não era ulterior
ao conceito ; não tinha de prosseguir o edifício da abstracção, devendo
manter-se sempre precavida, romper com as generalidades adquiridas e pôr-se em
contacto com a não-filosofia ; devia aproximar-se, o mais perto possível, não
daquilo que a realiza, mas daquilo que a precede, daquilo que ainda não
despertou a sua preocupação ; ela devia retomar — para as pensar, não para as
reduzir — a singularidade da história, as racionalidades regionais da ciência,
a profundidade da memória na consciência ; surge assim o tema de uma filosofia
presente, inquieta, móbil ao longo da sua linha de contacto com a
não-filosofia, não existindo senão por sua causa e revelando o sentido que essa
não-filosofia tem para nós. Ora, se a filosofia está nesse repetido contacto
com a não-filosofia, o que é o começo da filosofia? Será que a filosofia já
está aí, secretamente presente naquilo que não é filosofia, começando a
formular-se a meia voz no murmúrio das coisas? Mas, sendo assim, talvez o
discurso filosófico não tenha razão de ser ; ou deve começar com uma fundação
simultaneamente arbitrária e absoluta? Vemos que o tema hegeliano do movimento
adequado ao imediato é substituído pelo tema do fundamento do discurso
filosófico e da sua estrutura formal.
Finalmente,
último deslocamento que J.Hyppolite operou na filosofia hegeliana : se a
filosofia deve começar como discurso absoluto, o que é que se passará com a
história, e que começo é esse que começa com um indivíduo singular, numa
sociedade, numa classe social, no meio das lutas?
Estes
cinco deslocamentos, na medida em que levam a filosofia hegeliana até ao limite
extremo e na medida em que a fazem passar para o outro lado dos seus próprios
limites, convocam, umas a seguir às outras, todas a grandes figuras da
filosofia moderna que Jean Hyppolite não deixou de confrontar com Hegel : Marx
com as questões da história, Fichte com o problema do começo absoluto da
filosofia, Bergson com o tema do contacto com a não-filosofia, Kierkegaard com
o problema da repetição e da verdade, Husserl com o tema da filosofia enquanto
tarefa infinita ligada à história da nossa racionalidade. E, para além destas
figuras filosóficas, podemos distinguir todos os domínios de saber que
J.Hyppolite invocava em torno das suas próprias questões: a psicanálise com a
estranha lógica do desejo, a teoria da informação e a sua aplicação na análise
dos seres vivos, numa palavra, todos os domínios a partir dos quais se pode
colocar a questão de uma lógica e de uma existência que não páram de atar e
desatar os seus laços.
Penso
que esta obra, articulada em alguns livros maiores, e mais ainda, investida em
investigações, no ensino, numa perpétua atenção, num alerta e numa generosidade
permanentes, numa responsabilidade aparentemente administrativa e pedagógica
(quer dizer, na realidade, duplamente política), cruzou, formulou os problemas
mais fundamentais da nossa época. Somos muitos os que estamos infinitamente
obrigados para com ele.
É
por dele ter recebido, sem dúvida, o sentido e a possibilidade daquilo que
faço, por muitas vezes me ter esclarecido quando eu tateava às cegas, é por
essa razão que coloco o meu trabalho sob o seu signo e que o evoco ao terminar
a apresentação dos meus projectos. É na sua direcção, para essa falta — onde ao
mesmo tempo experimento a sua ausência e a minha própria imperfeição — que se
cruzam as questões que agora me coloco.
Dado
que lhe devo tanto, compreendo que, ao convidarem-me a ensinar aqui, a escolha
que os senhores fizeram é, em boa parte, uma homenagem que lhe fazem;
estou-vos reconhecido, profundamente, pela honra que me deram, e não menos o
estou pelo que a ele é devido nesta escolha. Se não me sinto à altura da tarefa
de lhe suceder, sei, no entanto, e se essa felicidade nos pudesse ter sido
dada, que teria sido, nesta tarde, encorajado pela sua indulgência.
E
compreendo melhor por que é que tive há pouco tantas dificuldades em começar.
Sei agora qual é a voz que eu gostaria que me precedesse, que me conduzisse,
que me convidasse a falar e que se alojasse no meu próprio discurso. Sei o que
é que havia de temível em tomar a palavra, dado que o fazia neste lugar, onde o
escutei, e onde ele já não está para me escutar.
FIM
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