A Paz Nas Escolas
Conheça as ideias do mestre Ubiratan D'Ambrosio, um homem
com o olhar sempre apaixonado para o futuro
Texto • Kátia Stringueto
Transdisciplinaridade é uma palavra esquisita e guarda um
conceito ainda novo para nossos ouvidos leigos, mas vem recebendo a atenção da
academia há tempos. O professor Ubiratan D’Ambrosio é um dos primeiros a falar
disso no Brasil. “Trans” é mais que “multi”. É para “além de”. É um universo em
que as disciplinas – matemática, literatura, geografia etc. – não só se
complementam, mas principalmente incluem o indivíduo, o que sente e pensa.
Nessa abordagem, a escola tem um papel fundamental na educação para a paz.
Professor emérito de matemática da Universidade Estadual de Campinas e, atualmente, da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de São Paulo, este paulistano do bairro do Brás é um resgatador de esperança. “Só quem pode surgir com o novo é o novo. E o novo são as crianças. Com elas, poderão vir as respostas que não encontramos”, declara.
Em sua biblioteca, com mais de 10 mil livros, D’Ambrosio recebeu a reportagem de BONS FLUIDOS para esta entrevista.
BF –“Violência vem de medo. Medo, de incompreensão, que vem de ignorância. E ignorância se combate com educação.” O senhor costuma citar essa frase da professora americana Leah Weels. Como a sala de aula pode contribuir para a paz?
UD –Educação é
preparar para o futuro. Os governantes pensam que isso é instrumentalizar
mão-de-obra para uma indústria que está se desenvolvendo, instruir para a
cidadania de modo que o sujeito seja cumpridor de leis. Mas, se só pensarem
desse jeito, nós não teremos muito futuro. Corremos o risco de formar uma
geração, duas, três para viver como nós, e esse é um mundo inviável. Um bom engenheiro,
um bom agricultor, o que eles vão fazer? Abrir mais terreno para plantar mais.
E isso sabemos que tem impacto no meio ambiente. Você tem que produzir mais
alimento, claro, mas não deve sacrificar uma fonte vital, como a água e as
árvores. O que cabe a nós, educadores, engenheiros, cientistas? Encontrar
alternativas.
BF – Por onde se começa?
UD – Incluindo os
aspectos emocional e espiritual. Na hora em que você faz uma usina hidrelétrica
e cobre um lugar onde estavam as raízes de muitas pessoas, nem percebe a
angústia que gerou. A transposição do rio São Francisco é o caso mais recente.
O rio se passasse por outra região, beneficiaria mais gente. Há méritos nisso.
Por outro lado, as pessoas que hoje estão perto dele sentirão um vazio quando
ele mudar de lugar. E não estamos pensando no impacto desse vazio a médio e
longo prazo. É mais ou menos o que acontece com uma árvore sem raiz. Se bater
um vento forte, ela tomba. Assim se dá com o indivíduo que imigrou para fugir
da seca, para fugir da violência, para buscar novas oportunidades. O que
acontece com ele? Como fica seu passado e sua tradição?
BF – Ele carrega tudo consigo, não?
UD – Isso
desaparece. Mesmo na cozinha. Os filhos começam a comer mais fast food do que a
comida tradicional dos pais. Então, a escola básica tem como responsabilidade
valorizar a cultura dos pais. Estimular a curiosidade da criança, pedindo para
ela perguntar, por exemplo, como era a vida deles ou com o que o pai brincava
quando tinha a idade dela. Dificilmente uma criança vai para casa perguntar uma
coisa que só os pais sabem.
BF – Em qualquer extrato social?
UD – Os filhos dos
engenheiros, dos professores, dos jornalistas enfrentam o seguinte problema: a
falta de tempo dos pais. O pai paga o professor particular, dá um computador
melhor, mas não estuda com o filho. A comunicação continua interrompida entre
as gerações. Ao trabalhar com isso, a escola devolve a dignidade. Quando os
pais se tornam detentores de um conhecimento que interessa ao filho, ambos se
beneficiam. Isso valoriza a geração mais velha e dá às crianças legitimidade
para admirar os pais. “Poxa, até que essa geração mais velha tem algo a
oferecer”, pensam. E é nisso que se inserem as tradições. A escola pode ajudar?
Mas é claro. Só a escola.
BF – Como o senhor relaciona a tradição e o combate à violência?
UD – Aí entra a
crítica. Nessa lembrança do passado, os pais imigrantes, por exemplo, vão
contar a violência social que os fez deixarem a casa, e os filhos, sentir que
não é esse o caminho a repetir.
BF – O senhor está falando em recuperar a
dignidade.
UD – Essa é a
maior violência que pode haver. E a sala de aula pode interferir. Se você quer
manter a vida, reconheça a essencialidade do outro. Simplesmente porque, sem
ele, não há você nem nada mais será gerado. E não adianta só ser outro igual a
você. Tem que ser diferente. Só posso dar continuidade à vida se encontro uma
mulher e tenho um filho.
BF – Por que estamos tão longe desse raciocínio
macro?
UD – Cada um se
pensa como indivíduo, mas esquece que é uma criatura extinta se não tiver o
outro. O que aconteceria com o Palmeiras se o Corinthians desaparecesse? Nos
esportes, essa interdependência fica evidente: como os times podem jogar se
forem iguais e não houver adversário? O conflito é importante. Agora, o
conflito não significa o confronto, que tem por objetivo subordinar e mesmo
eliminar uma das partes. A paz e a sobrevivência têm que ser baseadas na
convivência entre os diferentes. Eu não vou transformar minha mulher em um
homem para poder viver com ela. Ela vai poder ser mulher, completamente
diferente. Isso, aliás, é o que há de mais criativo e agradável.
BF – A matemática, a gramática e a história ajudam o aluno da escola básica a entender a necessidade da diferença?
UD –Nossa conversa
toda é mais de natureza filosófica, mas o modelo escolar nunca está separado.
Vamos pensar na matemática. O professor diz: eu tenho tantos mil reais e o
outro não tem nada. Para ter uma vida boa, precisaria de tanto. E o resto?
Coloco no banco e ele vai aumentando. O outro tem quase nada. Mas ele precisa
de coisas para sobreviver, assim como eu. Como vai fazer? Vai procurar no
banco. O banco tem porque eu deixei o dinheiro que não uso lá. Aí o banco
empresta para ele e cobra uma fortuna de juros. A minha vida fica cada vez mais
perfeita porque eu ganho juros do outro. E a vida dele fica cada vez pior.
Alguns dizem que esse tipo de reflexão não é para criança. Discordo.
BF – Qual seria, então, um sistema alternativo?
UD –Eu não sei. Os
que estão aí na política também não. Quem pode saber um novo sistema? A
criançada de hoje, que pode surgir com algumas idéias que a nós não ocorrem.
Essa é uma grande falha da escola hoje. Estimula-se um sentimento de que alguém
é melhor, o professor, e merece a medalha de ouro. Esquece-se de que, sem
adversário, não haveria medalha alguma. Aí pode estar a raiz do conflito. Pois
embute o conceito de que, se alguém é superior, o outro pode ser subjugado.
Toda vez que o outro – seja uma criança, seja um povo – não é respeitado como
ser pensante, há a possibilidade de o conflito virar um confronto. No fundo, é
preciso aprender a lidar com o encontro de culturas. Evidentemente que há
conflitos, mas precisam ser resolvidos sem o cala-boca. Assim se constrói uma
criança livre, capaz de pensar por si. Se ela fizer isso, nós teremos uma
chance de que pense o novo.
BF – Esse pensamento é bastante transdisciplinar, não?
UD –É. Todas essas
coisas estão subordinadas a algo maior, no qual, penso eu, as crianças são como
pássaros. Se vivem presas, com medo, sem poder falar muito porque falam errado,
sem poder se mexer muito porque são estabanadas, acabam com um comportamento
que não ajuda na formação do novo. A grande responsabilidade de nós,
educadores, não é dizer que o mundo deve ser assim ou assado porque, se
soubéssemos o que é melhor, já teríamos feito. Precisamos dar espaço à criança
durante seu processo de aprendizado. Lá na frente, não basta abrir a porta da
gaiola. Se ela não praticou, não saberá voar.
(FONTE: REVISTA BONS FLUIDOS)
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