ELETRÔNICOS DURAM 10 ANOS; LIVROS, 05 SÉCULOS’, DIZ
UMBERTO ECO
Umberto Eco assina novo
trabalho em parceria com o roteirista francês Jean-Claude Carrière. Ensaísta e
escritor italiano fala em entrevista exclusiva de seu novo trabalho, ‘Não
Contem com o Fim do Livro’ Umberto Eco.
MILÃO – O bom humor parece ser a
principal característica do semiólogo, ensaísta e escritor italiano Umberto
Eco. Se não, é a mais evidente. Ao pasmado visitante, boquiaberto diante de sua
coleção de 30 mil volumes guardados em seu escritório/residência em Milão, ele
tem duas respostas prontas quando é indagado se leu toda aquela vastidão de
papel. “Não. Esses livros são apenas os que devo ler na semana que vem. Os que
já li estão na universidade” – é a sua preferida. “Não li nenhum”, começa a
segunda. “Se não, por que os guardaria?” Na verdade, a coleção é maior, beira
os 50 mil volumes, pois os demais estão em outra casa, no interior da Itália. E
é justamente tal paixão pela obra em papel que convenceu Eco a aceitar o
convite de um colega francês, Jean-Phillippe de Tonac, para, ao lado de outro
incorrigível bibliófilo, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, discutir
a perenidade do livro tradicional. Foram esses encontros (“muito informais, à
beira da piscina e regados com bons uísques”, informa Umberto Eco) que
resultaram em Não
Contem Com o Fim do Livro, que a editora Record lança na
segunda quinzena de abril.
A conclusão é óbvia: tal qual a roda,
o livro é uma invenção consolidada, a ponto de as revoluções tecnológicas,
anunciadas ou temidas, não terem como detê-lo. Qualquer dúvida é sanada ao se
visitar o recanto milanês de Eco, como fez o Estado na última quarta-feira.
Localizado diante do Castelo Sforzesco, o apartamento – naquele dia soprado por
temperaturas baixíssimas, a neve pesada insistindo em embranquecer a formidável
paisagem que se avista de sua sacada – encontra-se em um andar onde antes fora
um pequeno hotel. “Se eram pouco funcionais para os hóspedes, os longos
corredores são ótimos para mim pois estendo aí minhas estantes”, comenta o
escritor, com indisfarçável prazer, ao apontar uma linha reta de prateleiras
repletas que não parecem ter fim. Os antigos quartos? Transformaram-se em
escritórios, dormitórios, sala de jantar, etc. O mais desejado, no entanto, é
fechado a chave, climatizado e com uma janela que veda a luz solar: lá estão as
raridades, obras produzidas há séculos, verdadeiros tesouros. Isso mesmo:
tesouros de papel.
Conhecido tanto pela obra acadêmica (é
professor aposentado de semiótica, mas ainda permanece na ativa na Faculdade de
Bolonha) como pelos romances (O Nome da Rosa, publicado em 1980, tornou-se um
best-seller mundial), Eco é um colecionador nato; além de livros, gosta também
de selos, cartões-postais, rolhas de champanhe. Na sala de seu apartamento,
estantes de vidro expõem tantos os livros raros – que, no momento, lideram sua
preferência – como conchas, pedras, pedaços de madeira. As paredes expõem quadros
que Eco arrematou nas visitas que fez a vários países ou que simplesmente
ganhou de amigos – caso de Mário Schenberg (1914-1990), físico, político e
crítico de arte brasileiro, de quem o escritor guarda as melhores recordações.
Aos 78 anos, Eco – que tem relançado
no País Arte e Beleza na Estética Medieval (Record, 368 págs., R$ 47,90,
tradução de Mario Sabino) – exibe uma impressionante vitalidade. Diverte-se com
todo tipo de cinema (ao lado de seu aparelho de DVD repousa uma cópia da
animação Ratatouille), mantém contato com seus alunos em Bolonha, escreve
artigos para jornais e revistas e aceita convites para organizar exposições,
como a que o transformou, no ano passado, em curador, no Museu do Louvre, em Paris. Lá, o autor teve
o privilégio de passear sozinho pelos corredores do antigo palácio real francês
nos dias em que o museu está fechado. E, como um moleque levado, aproveitou
para alisar o bumbum da Vênus de Milo. Foi com esse mesmo espírito bem-humorado
que Eco – envergando um elegante terno azul-marinho, que uma revolta gravata da
mesma cor tratava de desalinhar; o rosto sem a característica barba grisalha
(raspada religiosamente a cada 20 anos e, da última vez, em 2009, também porque
o resistente bigode preto o fazia parecer Gengis Khan nas fotos) – conversou
com a reportagem do Sabático.
O
livro não está condenado, como apregoam os adoradores das novas tecnologias?
O desaparecimento do livro é uma
obsessão de jornalistas, que me perguntam isso há 15 anos. Mesmo eu tendo
escrito um artigo sobre o tema, continua o questionamento. O livro, para mim, é
como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez
inventado, não muda jamais. Continua o mesmo e é difícil de ser substituído. O
livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos
chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos. Afinal,
ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia afirmar, anos
atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes?
E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos?
Conversei recentemente com o diretor da Biblioteca Nacional de Paris, que me
disse ter escaneado praticamente todo o seu acervo, mas manteve o original em
papel, como medida de segurança.
Qual
a diferença entre o conteúdo disponível na internet e o de uma enorme
biblioteca?
A diferença básica é que uma
biblioteca é como a memória humana, cuja função não é apenas a de conservar,
mas também a de filtrar – muito embora Jorge Luis Borges, em seu livro Ficções,
tenha criado um personagem, Funes, cuja capacidade de memória era infinita. Já
a internet é como esse personagem do escritor argentino, incapaz de selecionar
o que interessa – é possível encontrar lá tanto a Bíblia como Mein Kampf, de
Hitler. Esse é o problema básico da internet: depende da capacidade de quem a
consulta. Sou capaz de distinguir os sites confiáveis de filosofia, mas não os
de física. Imagine então um estudante fazendo uma pesquisa sobre a 2.ª Guerra
Mundial: será ele capaz de escolher o site correto? É trágico, um problema para
o futuro, pois não existe ainda uma ciência para resolver isso. Depende apenas
da vivência pessoal. Esse será o problema crucial da educação nos próximos
anos.
Não
é possível prever o futuro da internet?
Não para mim. Quando comecei a usá-la,
nos anos 1980, eu era obrigado a colocar disquetes, rodar programas. Hoje,
basta apertar um botão. Eu não imaginava isso naquela época. Talvez, no futuro,
o homem não precise escrever no computador, apenas falar e seu comando de voz
será reconhecido. Ou seja, trocará o teclado pela voz. Mas realmente não sei.
Como
a crescente velocidade de processar dados de um computador poderá influenciar a
forma como absorvemos informação?
O cérebro humano é adaptável às
necessidades. Eu me sinto bem em um carro em alta velocidade, mas meu avô
ficava apavorado. Já meu neto consegue informações com mais facilidade no
computador do que eu. Não podemos prever até que ponto nosso cérebro terá
capacidade para entender e absorver novas informações. Até porque uma evolução
física também é necessária. Atualmente, poucos conseguem viajar longas
distâncias – de Paris a Nova York, por exemplo – sem sentir o desconforto do
jet lag. Mas quem sabe meu neto não poderá fazer esse trajeto no futuro em meia
hora e se sentir bem?
É
possível existir contracultura na internet?
Sim, com certeza, e ela pode se
manifestar tanto de forma revolucionária como conservadora. Veja o que acontece
na China, onde a internet é um meio pelo qual é possível se manifestar e reagir
contra a censura política. Enquanto aqui as pessoas gastam horas batendo papo,
na China é a única forma de se manter contato com o restante do mundo.
Em
um determinado trecho de ‘Não Contem Com o Fim do Livro’, o senhor e Jean-Claude
Carrière discutem a função e preservação da memória – que, como se fosse um
músculo, precisa ser exercitada para não atrofiar.
De fato, é importantíssimo esse tipo
de exercício, pois estamos perdendo a memória histórica. Minha geração sabia
tudo sobre o passado. Eu posso detalhar sobre o que se passava na Itália 20
anos antes do meu nascimento. Se você perguntar hoje para um aluno, ele
certamente não saberá nada sobre como era o país duas décadas antes de seu
nascimento, pois basta dar um clique no computador para obter essa informação.
Lembro que, na escola, eu era obrigado a decorar dez versos por dia. Naquele
tempo, eu achava uma inutilidade, mas hoje reconheço sua importância. A cultura
alfabética cedeu espaço para as fontes visuais, para os computadores que exigem
leitura em alta velocidade. Assim, ao mesmo tempo que aprimora uma habilidade,
a evolução põe em risco outra, como a memória. Lembro-me de uma maravilhosa
história de ficção científica escrita por Isaac Asimov, nos anos 1950. É sobre
uma civilização do futuro em que as máquinas fazem tudo, inclusive as mais
simples contas de multiplicar. De repente, o mundo entra em guerra, acontece um
tremendo blecaute e nenhuma máquina funciona mais. Instala-se o caos até que se
descobre um homem do Tennessee que ainda sabe fazer contas de cabeça. Mas, em
vez de representar uma salvação, ele se torna uma arma poderosa e é disputado
por todos os governos – até ser capturado pelo Pentágono por causa do perigo
que representa (risos). Não é maravilhoso?
No
livro, o senhor e Carrière comentam sobre como a falta de leitura de alguns
líderes influenciou suas errôneas decisões.
Sim, escrevi muito sobre informação
cultural, algo que vem marcando a atual cultura americana que parece questionar
a validade de se conhecer o passado. Veja um exemplo: se você ler a história
sobre as guerras da Rússia contra o Afeganistão no século 19, vai descobrir que
já era difícil combater uma civilização que conhece todos os segredos de se
esconder nas montanhas. Bem, o presidente George Bush, o pai, provavelmente não
leu nenhuma obra dessa natureza antes de iniciar a guerra nos anos 1990. Da
mesma forma que Hitler devia desconhecer os relatos de Napoleão sobre a
impossibilidade de se viajar para Moscou por terra, vindo da Europa Ocidental,
antes da chegada do inverno. Por outro lado, o também presidente americano
Roosevelt, durante a 2.ª Guerra, encomendou um detalhado estudo sobre o
comportamento dos japoneses para Ruth Benedict, que escreveu um brilhante livro
de antropologia cultural, O Crisântemo e a Espada. De uma certa forma, esse
livro ajudou os americanos a evitar erros imperdoáveis de conduta com os
japoneses, antes e depois da guerra. Conhecer o passado é importante para
traçar o futuro.
Diversos
historiadores apontam os ataques terroristas contra os americanos em 11 de
setembro de 2001 como definidores de um novo curso para a humanidade. O senhor
pensa da mesma forma?
Foi algo realmente modificador. Na
primeira guerra americana contra o Iraque, sob o governo de Bush pai, havia um
confronto direto: a imprensa estava lá e presenciava os combates, as perdas
humanas, as conquistas de território. Depois, em setembro de 2001, se percebeu
que a guerra perdera a essência de confronto humano direto – o inimigo
transformara-se no terrorismo, que podia se personificar em uma nação ou mesmo
nos vizinhos do apartamento ao lado. Deixou de ser uma guerra travada por
soldados e passou para as mãos dos agentes secretos. Ao mesmo tempo, a guerra
globalizou-se; todos podem acompanhá-la pela televisão, pela internet. Há
discussões generalizadas sobre o assunto.
Falando
agora sobre sua biblioteca, é verdade que ela conta com 50 mil volumes?
Sim, de uma forma geral. Nesse
apartamento em Milão, estão apenas 30 mil – o restante está no interior da
Itália, onde tenho outra casa. Mas sempre me desfaço de algumas centenas, pois,
como disse antes, é preciso fazer uma filtragem.
Por
que o senhor impediu sua secretária de catalogá-los?
Porque a forma como você organiza seus
livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em
ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um
historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar
diferente. Eu tenho aqui literatura contemporânea separada por ordem alfabética
de países. Já a não contemporânea está dividida por séculos e pelo tipo de
arte. Mas, às vezes, um determinado livro pode tanto ser considerado por mim
como filosófico ou de estética da arte; depende do motivo da minha pesquisa.
Assim, reorganizo minha biblioteca segundo meus critérios e somente eu, e não
uma secretária, pode fazer isso. Claro que, com um acervo desse tamanho, não é
fácil saber onde está cada livro. Meu método facilita, eu tenho boa memória,
mas, se algum idiota da família retira alguma obra de um lugar e a coloca em
outro, esse livro está perdido para sempre. É melhor comprar outro exemplar
(risos).
Um
estudioso que também é seu amigo, Marshall Blonsky, escreveu certa vez que
existe de um lado Umberto, o famoso romancista, e de outro Eco, professor de
semiótica.
E ambos sou eu (risos). Quando escrevo
romances, procuro não pensar em minhas pesquisas acadêmicas – por isso, tiro
férias. Mesmo assim, leitores e críticos traçam diversas conexões, o que não
discuto. Lembro de que, quando escrevia O Pêndulo de Foucault, fiz diversas
pesquisas sobre ciência oculta até que, em um determinado momento, elas
atingiram tal envergadura que temi uma teorização exagerada no romance. Então,
transformei todo o material em um curso sobre ciência oculta, o que foi muito
bem-feito.
Por
falar em ‘O Pêndulo de Foucault’, comenta-se que o senhor antecipou em muito
tempo O Código de Da Vinci, de Dan Brown.
Quem leu meu livro sabe que é verdade.
Mas, enquanto são os meus personagens que levam a sério esse ocultismo barato,
Dan Brown é quem leva isso a sério e tenta convencer os leitores de que
realmente é um assunto a ser considerado. Ou seja, fez uma bela maquiagem.
Fomos apresentados neste ano em uma première do Teatro Scala e ele assim se
apresentou: “O senhor não me admira, mas eu gosto de seus livros.” Respondi:
Não é que eu não goste de você – afinal, eu criei você (risos).
Em
seu mais conhecido romance, O Nome da Rosa, há um momento em que se discute se
Jesus chegou a sorrir. É possível pensar em senso de humor quando se trata de
Deus?
De acordo com Baudelaire, é o Diabo
quem tem mais senso de humor (risos). E, se Deus realmente é bem-humorado, é
possível entender por que certos homens poderosos agem de determinada maneira.
E se ainda a vida é como uma história contada por um idiota, cheia de som e
fúria, como Shakespeare apregoa em Macbeth, é preciso ainda mais senso de humor
para entender a trajetória da humanidade.
Como
foi a exposição no Museu do Louvre, em Paris, da qual o senhor foi curador, no ano
passado?
Há quatro anos, o museu reserva um mês
para um convidado (Toni Morrison foi escolhida certa vez) organizar o que bem
entender. Então, me convidaram e eu respondi que queria fazer algo sobre
listas. “Por quê?”, perguntaram. Ora, sempre usei muitas listas em meus
romances – até pensei em escrever um ensaio sobre esse hábito. Bem, quando se
fala em listas na cultura, normalmente se pensa em literatura. Mas,
como se trata de um museu, decidi elaborar uma lista visual e musical, essa
sugerida pela direção do Louvre. Assim, tive o privilégio (que não foi
oferecido a Dan Brown) de visitar o museu vazio, às terças-feiras, quando está
fechado. E pude tocar a bunda da Vênus de Milo (risos) e admirar a Mona Lisa a
apenas 20 centímetros
de distância.
O
senhor esteve duas vezes no Brasil, em 1966 e 1979. Que recordações guarda
dessas visitas?
Muitas. A primeira, em São Paulo, onde dei
algumas aulas na Faculdade de Arquitetura (da USP), que originaram o livro A
Estrutura Ausente. Já na segunda fui acompanhado da família e viajamos de
Manaus a Curitiba. Foi maravilhoso. Lembro-me de meu editor na época pedindo
para eu ficar para o carnaval e assistir ao desfile das escolas de samba de
camarote, o que não pude atender. E também me recordo de imagens fortes, como a
da moça que cai em transe em um terreiro (para o qual fui levado por Mario
Schenberg) e que reproduzo em
O Pêndulo de Foucault.
(Ubiratan Brasil,
para o Caderno 2 do Estadão. Extraído de DigitalManuscripts)