A novela a Mão e a Luva (1874), de Machado de
Assis, é uma das narrativas iniciais do Bruxo do Cosme Velho, ainda sob a
influência do romantismo e do convencionalismo oitocentista. Por isso, é
caracterizada como da primeira fase do escritor carioca, juntamente com as obras
Contos Fluminenses (1870), Ressurreição (1872), Histórias da Meia-Noite (1873), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).
Tais obras
primeiras, ainda com um Machado em idade prematura, inocente, imbuído dos
ideais românticos de sua época, não rompem de vez com o costume da sociedade e
pretendem acariciar as leitoras suspirantes, que ruborizam com os apelos do
coração, e a crítica ainda afeita aos traços românticos.
É nesse mister
que Afrânio Coutinho informa na Introdução da obra: “Caracteriza-a uma narrativa monolinear, com intriga sem maiores
complicações, crescendo em ordem cronológica, em torno de pequeno número de
personagens. A ação simples, diz o autor na advertência de 1907, serve ‘apenas de tela em que lancei os contornos
dos perfis’. (p. 17)
Assim, passamos
a analisar os aspectos formais de A Mão e a Luva, como texto narrativo que se
propõe.
ENREDO
O enredo de A
mão e a Luva pode ser facilmente identificado com uma marcação um tanto quanto
fixa:
a)
A exposição ou a apresentação: no capítulo inicial os
personagens principais Estevão, Guiomar e Luís Alves são mostrados e descritos,
no ambiente e no tempo em que a estória se desenrola.
b)
A complicação: os conflitos da novela se dão quando o amor
que Estevão sente por Guiomar não é correspondido, os problemas começam a
surgir daí.
c)
O clímax: há alguns picos de tensão em A Mão e a Luva, quando
Estevão decide se declarar pela segunda vez a Guiomar, quando Luís Alves fala
para o amigo que ela o ama e vão se casar, mas o principal é quando Guiomar tem
que decidir entre dois pretendentes: Luís Alves ou o primo, Jorge.
d)
O desfecho: o final da novela se dá com os preparativos do
casamento de Luís Alves com Guiomar, com um Estevão covardemente assistindo a
tudo da praia, tentando em vão se suicidar.
PERSONAGENS
Pode-se analisar
os personagens do livro quanto ao papel desempenhado no enredo:
a)
Principais: Guiomar, Luís Alves e Estevão.
b)
Secundários: a baronesa, a inglesa Mrs Oswald, Jorge e mais
alguns poucos que freqüentavam as festas em casa da baronesa.
Pode-se também
analisar os personagens quanto à caracterização que têm no romance:
a)
Esféricas ou cíclicas: apenas Luís Alves tem essa
característica, pois é um personagem que é deixado de lado, sem descrições,
paira sempre um mistério sobre ele e a sua índole. No entanto, no final da
novela ele dá uma reviravolta e casa-se com a outra personagem principal,
Guiomar.
b)
Personagens planas: como já foi afirmado acima, todos os
outros se caracterizam por ter uma índole mais ou menos previsível, atitudes e
nuances que fazem supor as suas ações no desenrolar do romance, não trazendo
nenhuma reviravolta ou surpresa.
FOCO NARRATIVO
Ainda sob a
influência do romantismo, Machado cria um narrador que tenta buscar o leitor o
tempo todo, tal qual um contador de história que necessita da atenção dos
leitores. Poder-se-ia afirmar que o narrador é em terceira pessoa,
narrador-observador ou onisciente, que conta a estória como se estivesse
assistindo-a de longe, vendo os fatos se desenrolarem.
No entanto, ele
também é um narrador intruso, como podemos ver nessas passagens: “e que o leitor saberá daqui a pouco” (p.
27), “Demos-lhe razão ao despeito com que
fechou e atirou ao chão” (p. 44), “estas
minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de
histórias” (p. 45), etc.
TEMPO
O lapso temporal
do romance são de dois anos e poucos meses, tempo em que, cronologicamente, Estevão
tem uma desilusão amorosa com Guiomar, forma-se em bacharel em São Paulo e
retorna à corte. Daí os fatos vão acontecendo e sendo descritos pelo narrador:
“Claro é que dous anos depois, quando
tomou o grau de bacharel(...)” (p. 37)
Não há
praticamente tempo psicológico, somente quando Estevão tenta a todo custo
sobreviver das lembranças do amor ou do carinho que Guiomar tivesse dado a ele
no passado, quando do primeiro flerte. São raros flash-backs apenas para acentuar o amor/a dor da personagem: “Estevão tinha-a visto pela primeira vez,
seis meses antes, e desde logo sentiu-se preso por ela (...)” (p. 30)
ESPAÇO
A estória está
ambientada no Rio de Janeiro, como quase em todos os romances de Machado, mais
especificamente no bairro do Botafogo, onde Luís Alves e a baronesa são
convenientemente vizinhos de chácaras ou sítios. Os lugares, assim como as
paisagens, são pouco descritas, exceto no capítulo II (Um Roupão) e no III (Ao
Pé da Cerca), quando Estevão se depara com Guiomar em um ambiente bucólico (a
chácara da baronesa) e faz sentido com o ambiente interno, romantizado, que o
primeiro vive.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Mão e a Luva,
considerado um livro menor de Machado de Assis, por não ter rompido com o
convencionalismo romântico faz com que o(a) leitor(a) sinta empatia com Luís
Alves, não considerando-o um vilão, assim como a Estevão, representativo do
amor visceral, romântico, à moda de Werther (referência dentro do livro de
Machado), que caracterizava a época. É o que parece concordar o crítico Helio
de Seixas Guimarães:
“(...) é pelos olhos do
personagem (Estevão) que o leitor
assiste à vitória de Guiomar e Luís Alves, assim como é o seu sofrimento que
apela à simpatia do leitor, ainda que se dê em registro cômico. A comicidade
associada ao personagem tem um objetivo: despertar a identificação do leitor
com Estevão para corrigir, pelo riso, as idéias que o leitor eventualmente
compartilhe com o personagem, caracterizado por Machado como quintessência do
romantismo” (grifo nosso, p. 143)
Da mesma forma,
o livro supracitado de Machado foi composto para agradar a críticos e a
leitores que não viram o anterior, Ressurreição, com bons olhos:
“As referências, embora negativas e associadas a uma
visão de mundo e a um gosto manifestadamente retrógrados, são apresentadas de
modo bastante simpático, fazendo de Estevão o principal foco de identificação
do leitor e quem sabe da própria crítica que, diante de Ressurreição, cobrara
de Machado um romance mais ortodoxo” (idem, p. 143-144)
Podemos ver que,
mesmo atrelado ainda aos traços estilísticos da sua época, com José de Alencar,
Manuel Antonio de Almeida, Joaquim Manuel de Almeida, entre outros, Machado se
destacava com um estro particular, diferente dos demais. Isso se dava por não
atribuir aos personagens características marcadamente tropicais
(MIGUEL-PEREIRA, p. 62-3), ou seja, ele os universalizava, tanto que em pleno
século XXI continua sendo clássico e atual.
Em relação à
novela A Mão e a Luva, podemos ver que os personagens principais (Guiomar,
Estêvão e Luís Alves) são cidadãos urbanos, de classe média (Estêvão) e classe
alta (Luís Alves e Guiomar, de origem simples, mas criada pela madrinha baronesa),
bacharéis (os homens) e vivem um romance que tanto poderia se passar no Brasil
como no Canadá ou na Inglaterra.
Ao mesmo tempo,
Machado não pintou os personagens acima sendo marcadamente protagonistas e
antagonistas, bons e maus, mocinhos e bandidos (Idem, p. 62-3). Guiomar quer um
marido forte emocionalmente, viril e sensível, para isso nega o amor de dois
dos seus pretendentes que não atendiam a esse apelo e opta por Luís Alves;
Estêvão é o romântico da vez, adorna-o um amor juvenil por Guiomar, uma paixão
forte, irresistível e da mesma forma de caráter fraco, covarde; e Luís Alves,
valoroso, bom caráter, honesto e também frio, ambicioso, interesseiro e que não
respeitou a dor do amigo, vindo a se casar com Guiomar.
Vê-se, portanto,
que as personagens de A Mão e a Luva, assim como de Ressurreição, Helena e Iaiá
Garcia, não são marcadamente heróis, totalmente bons, nem maus. São pessoas que
mais se aproximam da realidade, da gente que povoa o planeta, ao contrário das
tendências romantizadas que desejavam o bem supremo (inocente) contra o mal
(vilania, amor não correspondido, etc).
Tais
características distinguem Machado de Assis dos escritores românticos
tradicionais e também lançam, ainda que incipientes, os germens que farão ele
se tornar um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.
O rompimento de
Machado, no entanto, com as correntes literárias românticas e o que era
considerado “normal” literariamente na sua época só vai se tornar efetivo com a
publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881. Mas aí já é uma outra
história.
BIBLIOGRAFIA
ASSIS, Machado de. A Mão e a
Luva. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.
CARA, Salete de Almeida. Machado de Assis nos anos 1870: A Preparação
do Romance Realista. In: O Bruxo do
Cosme Velho. Machado de Assis no Espelho. São Paulo: Alameda, 2004. P. 29 a
49.
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. Série
Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1991.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
Leitores de Machado de Assis. O romance Machadiano e o Público de
Literatura no Século 19. São Paulo: Edusp. P. 138 a 147.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis. In: Prosa de Ficção (De 1870 a 1920). [SR]
Otima análise. Parabéns pelo trabalho, prof. Gustavo.
ResponderExcluirCom certeza me ajudou bastante, principalmente porque deixa claro a estrutura e elementos da narrativa.