NADA ALÉM DOS PÉS
Por Gustavo Atallah Haun (*)
Outro
dia uma professora de uma universidade daqui da região grapiúna estava
comentando em sala de aula os casos de podolatria na literatura brasileira. O
tema bastante curioso suscitou em alguns, estranheza, e, em outros, a
rememoração de fatos relacionados.
A
docente, com toda a lhaneza que lhe é característica, falava sobre a famosa
passagem do livro O Guarani, de José de Alencar, quando a diáfana Ceci está
dormindo e o índio Peri enxerga o pezinho límpido, puro e alvo fora dos lençóis
e do camisolão noturno. São nada mais, nada menos, do que 03 (três) páginas
descrevendo o pé da portuguesinha. Só que, após ler o romance romantista,
percebe-se que não há tal descrição... Creio que a mestra estava tratando de
outro livro do mesmo autor, A Pata da Gazela. Vai saber.
Então,
num átimo de segundo, lembrei-me, com toda certeza, de outro escritor que tem
uma verdadeira tara por pés. Como entusiasta e fã ardoroso, não pude me conter
e resolvi entrar de cabeça no debate sobre o assunto. O genial Raduan Nassar, suprassumo
da prosa brasileira dos últimos tempos, com apenas três livros lançados
conseguiu desenvolver o seu fetiche pela parte do corpo humano, digamos, nada
convencional.
Em
Lavoura Arcaica (1975) a personagem
André detinha a sua paixão pelos membros inferiores: “na modorra das tardes
vadias na fazenda, [...]; amainava a febre dos meus pés na terra
úmida” (p. 13) ou quando idolatrava a irmã Ana dançando, ele
“desamarrava os sapatos,
tirava as meias e com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e
alcançando abaixo delas a camada de espesso húmus [...], e ficava atento para os seus passos que de repente perdiam a pressa e
se tornavam lentos e pesados, amassando distintamente as folhas secas sob os
pés e me amassando confusamente por dentro” (p.
32-33)
são duas
das tantas passagens acerca do tema.
Já
na obra Um Copo de Cólera (1978) esse
sórdido deslumbramento é acentuado de vez em Raduan. Não são poucas as
referências sobre os pés na obra. Antes de se deliciarem numa noite de amor
ardente, o protagonista assevera: “fui
tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas
mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra
naquele instante” (p. 12) e mais adiante “conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivos por uns pés, e
muito especialmente pelos meus, firmes no porte e bem feitos na escultura[...]”
(p. 13). No final da briga apoteótica entre os dois, o protagonista chega a
masturbar com os pés a personagem feminina:
“‘estou sem meias e sem sapatos, meus pés como sempre estão limpos e
úmidos’ [...] ‘você se lembra do pé que eu te dei um
dia?’ e ela então disse ‘amor’ dum jeito bem sufocado, e eu velhaco recordei
‘era um pé branco e esguio como um lírio, lembra?...’ [...] ‘que que você fez com o pé que eu te dei um
dia?...’ e ela entrando em agonia disse suspirando ‘amor, amor, amor’” (p. 73-74).
Por
fim, o último livro publicado por Nassar, Meninas a Caminho (1997), com cinco
contos, foi na verdade escrito nos idos de 60/70.
Aqui
o célebre autor paulista volta às raias com a sua loucura. Dessa vez de leve,
preparando o caminho para as duas obras que se seguiram, por isso as menções
aos pés são menores, contudo constantes.
No
primeiro conto, que dá nome ao livro, na descrição das personagens é a primeira
característica acentuada: “Vindo de casa,
a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua” (p. 09) ou “Descalços, sem camisa, os corpos arcados, os
meninos [...]” (p.11) ou ainda “O seu
Giovanni arrasta as alpergatas na outra calçada” (p. 18); ou a paralítica,
a velha mestre-escola: “os chinelões de
lã descansando no assoalho, os pés sobre o banquinho [...]” (p. 24) que dá
uma lição às crianças e a imagem do livro didático é de um sapateiro. Do que
mais seria?
Mas
é somente no segundo conto, Hoje de Madrugada, que o bicho pega:
“e, debaixo da
mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a
artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando
clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo
se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos,
subindo afoito, me queimando a perna com sua febre.” (p. 57).
Eis
mais uma curiosidade e delícia da literatura brasileira, as suas fixações
obsessivas e os seus dramas. Em poucos livros Raduan Nassar nos legou a sua
paixão acerca dos pés, um podólatra inigualável, que não merece ser olvidado
pela densidade da sua obra, curta, mas exótica e profunda!
(*)Gustavo Atallah Haun é professor, formado em
Letras, UESC, e ministra aula em Itabuna e região. Escreve para jornais de
Itabuna, Ilhéus e edita oblogderedacao.blogspot.com (g_a_haun@hotmail.com). É
maçom, da Loja Acácia Grapiúna.
BIBLIOGRAFIA:
NASSAR,
Raduan. Lavoura Arcaica. 3ª edição
rev. pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
______________.
Um Copo de Cólera. 5ª edição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______________.
Menina a Caminho. 2ª edição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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