A FORÇA DOS ARGUMENTOS
TEXTO 01:
CRÔNICA SOBRE AS
CANÇÕES DE NINAR
(Autoria
desconhecida)
Eu, uma brasileira morando nos
Estados Unidos da América, para ajudar no orçamento, estou fazendo
"bico" de babá e estudante. Ao cuidar de uma das meninas de quem eu
"teoricamente" tomo conta, uma vez cantei "Boi da cara preta" para ela, antes dela dormir. Ela adorou e
essa passou a ser a música que ela sempre pede para eu cantar ao colocá-la para
dormir. Antes de adotarmos o "boi, boi, boi" como canção de ninar, a
canção que cantávamos (em Inglês) dizia algo como:
Boa noite,
linda menina, durma bem.
Sonhos doces
venham para você,
Sonhos doces
por toda noite"...
(Que lindo, não é mesmo!?)
Eis que um dia Mary Helen me
pergunta o que as palavras, em português, da música "Boi da cara
preta" queriam dizer em Inglês:
Boi, boi, boi,
Boi da cara preta,
Pega essa menina
Que tem medo de careta...
(???)
Como eu ia explicar para ela e
dizer que, na verdade, a música "Boi da cara preta" era uma ameaça,
era algo como "dorme logo, senão o boi vem te comer"?
Como explicar que eu estava
tentando fazer com que ela dormisse com uma música que incita um bovino de cor
negra a pegar uma cândida menina?
Claro que menti para ela, mas
comecei a pensar em outras canções infantis, pois não me sentiria bem ameaçando
aquela menina com um temível boi toda noite...
Que tal...
Nana neném
Que a cuca vai pegar...
Caramba... outra ameaça! Agora
com um ser ainda mais maligno que um boi preto!
Depois de uma frustrante busca
por uma canção infantil do folclore brasileiro, que fosse positiva e de uma
longa reflexão, descobri toda a origem dos problemas do Brasil. O problema do
Brasil é que a sua população em geral tem uma autoestima muito baixa. Isso faz
com que os brasileiros se sintam sempre inferiores e ameaçados, passivos o
suficiente para aceitar qualquer tipo de extorsão e exploração, seja interna ou
externa. Por que isso acontece? Trauma de infância! Trauma causado pelas
canções da infância!
Vou explicar: nós somos
ameaçados, amedrontados e encaramos tragédias desde o berço! Por isso levamos
tanta porrada da vida e ficamos quietos.
Exemplificarei minha tese:
Atirei o pau no gato-to-to
Mas o gato-to-to não morreu-reu-reu
Dona Chica-ca-ca
Admirou-se-se
Do berrô, do berrô que o gato deu
Miaaau!
Para começar, esse clássico do
cancioneiro infantil é uma demonstração clara de falta de respeito aos animais
(pobre gato) e crueldade. Por que atirar o pau no gato, essa criatura tão
indefesa? E para acentuar a gravidade, ainda relata o sadismo dessa mulher sob
a alcunha de "D. Chica". Uma vergonha!
Eu sou pobre, pobre, pobre,
De marré, marré, marré.
Eu sou pobre, pobre, pobre,
De marré de si.
Eu sou rica, rica, rica,
De marré, marré, marré.
Eu sou rica, rica, rica,
De marré de si.
Colocar a realidade tão
vergonhosa da desigualdade social em versos tão doces!!! É impossível não se
lembrar do seu amiguinho rico da infância com um carrinho fabuloso, de controle
remoto, e você brincando com seu carrinho de plástico... Fala sério!
Vem cá, Bitu! vem cá, Bitu!
Vem cá, meu bem, vem cá!
Não vou lá! Não vou lá, Não vou lá!
Tenho medo de apanhar.
Quem foi o adulto sádico que
criou essa rima? No mínimo ele espancava o pobre Bitú...
Marcha soldado,
Cabeça de papel!
Quem não marchar direito,
Vai preso pro quartel.
De novo, ameaça! Ou obedece ou
você vai se f... Não é à toa que o brasileiro admite tudo de cabeça baixa...
A canoa virou,
Quem deixou ela virar,
Foi por causa de (nome de pessoa)
Que não soube remar.
Ao invés de incentivar o
trabalho de equipe e o apoio mútuo, as crianças brasileiras são ensinadas a
dedurar e a condenar um semelhante. Bate nele, mãe!
Samba-lelê tá doente,
Tá com a cabeça quebrada.
Samba-lelê precisava
É de umas boas palmadas.
A pessoa, conhecida como
Samba-lelê, encontra-se com a saúde debilitada e necessita de cuidados médicos.
Mas, ao invés de compaixão e apoio, a música diz que ela precisa de palmadas!
Acho que o Samba-lelê deve ser irmão do Bitú...
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou...
Como crescer e acreditar no amor
e no casamento depois de ouvir essa passagem anos a fio?
O cravo brigou com a rosa
Debaixo de uma sacada;
O cravo saiu ferido
E a rosa despedaçada.
O cravo ficou doente,
A rosa foi visitar;
O cravo teve um desmaio,
A rosa pôs-se a chorar.
Desgraça, desgraça, desgraça! E
ainda incita a violência conjugal (releia a primeira estrofe). Precisamos lutar
contra essas lembranças, meus amigos! Nossos filhos merecem um futuro melhor!
A FORÇA DOS
CONTRA-ARGUMENTOS
TEXTO 02:
INOCÊNCIA PERDIDA
DAS CANÇÕES DE NINAR
(Hélio Consolaro)
Recebi de Manuel Raimundo de
Souza Jr., o Nezito, que mora em São Paulo, o texto de uma notícia interessante
veiculada pela rádio CBN. Outro e-mail atribui a autoria do texto à poetisa de
Araçatuba Vilmara Bello, que mora em Londres.
(...)
Internautas não valorizam a
autoria dos textos, por isso não se sabe quem é o verdadeiro autor dele. A
crônica mostrava a linguagem politicamente incorreta das canções de ninar do
Brasil e como suas letras formam a baixa autoestima das crianças.
A autora (ou autor) do texto,
que trabalha como babá em Londres, ficou com vergonha de traduzir as letras
para a criança de quem cuidara, pois as canções de ninar inglesas são suaves e
falam de coisas bonitas, enquanto as nossas ameaçam a criança que não quer
dormir com boi da cara preta, cuca e caretas.
Na verdade, a autora (ou autor)
confundiu a classificação de algumas canções, classificando-as como de ninar.
“Atirei o pau no gato”, por exemplo, é cantiga de roda. Outro erro da autora,
mais grave, foi ignorar a cultura brasileira e que as histórias das canções de
ninar brasileiras eram cantadas por escravas (mucamas) aos filhos da sinhá.
A bem da verdade, ela não amava
aquela criança. O seu trabalho era forçado, feito sem amor. E se escravos eram
espancados, perseguidos, numa sociedade repressora ao extremo, as canções de
ninar não podiam ser muito diferentes. Cada pessoa doa o que recebe.
Se as canções de ninar eram
cantadas aos filhos dos senhores, não causaram efeitos maléficos, pois não
considero que a elite econômica do Brasil tenha baixa autoestima. Aliás, ela
tem mesmo é o nariz bem empinado.
Essa discussão é semelhante
àquela da influência dos filmes de violência exibidos pela tevê, se deixa ou
não a criança violenta. Na verdade, quem deixa a criança violenta é a própria
sociedade que o circunda, da qual ela é testemunha.
Apesar de a análise apresentada
pelo texto ser bem feita, com inteligência, seu autor sofisma quando não
considera os aspectos históricos, ignorando os componentes da nossa cultura e
da alma dos brasileiros.
Há na autora (ou autor) o
deslumbramento de brasileiro por aquilo que é estrangeiro. Não podia ser
diferente, pois ela foi tentar a vida lá fora, não teve as oportunidades aqui.
Embora a tendência do brasileiro que more por algum tempo exterior, seja
valorizar o Brasil.
E, por último, quero dizer que apesar
da linguagem politicamente incorreta de nossas canções de ninar e de roda, às
vezes, com incentivo à violência, ensinando a maltratar os animais, não se
educaram aqui George W. Bush nem Tony Blair.
COMENTÁRIOS
IMPORTANTES:
Os textos apresentados são dissertações
argumentativas livres, isto é, textos que defendem ideias por meio de
argumentos, mas seguem estruturas livres, diferentes das redações de concursos
e vestibulares, justamente por não terem sido feitas com esse propósito.
O texto I defende a tese de que “o
brasileiro tem uma autoestima muito baixa devido a traumas causados por canções
da infância”. A tese não é apresentada na introdução.
O texto é iniciado com uma longa
sequência narrativa: a autora narra um acontecimento em Londres que a motivou a
escrever o texto, a dissertar sobre as canções infantis do folclore brasileiro
e defender sua tese de que elas são nocivas às crianças. O que há de melhor
nesse texto é o sistema de argumentação-exemplificação. A autora defende que as
canções infantis são negativas e cita diversos exemplos dessas canções.
O texto II está mais de acordo
com um texto dissertativo, é mais bem estruturado e embasado. O texto II
levanta alguns argumentos para derrubar a tese defendida pela autora do texto
I:
a) Argumento por evidência: as
cantigas de ninar não causam baixa autoestima nas crianças. Evidência: nossa
elite econômica não tem baixa autoestima, tem, na verdade, o nariz bem
empinado.
b) Argumento por analogia: as
canções de ninar não deixam nossas crianças com baixa autoestima, da mesma
forma que filmes violentos não deixam as crianças violentas.
c) Argumento por evidência: é
preciso analisar os aspectos históricos. As canções de ninar não foram criadas
por mentes de mães doentias, mas por mucamas que não amavam as crianças de quem
cuidavam.
d) Argumento ad hominem: a autora é deslumbrada como
todo brasileiro que vai tentar a vida no exterior. Esse tipo de argumento
consiste em atacar o autor da ideia em vez de atacar a ideia. Em debates
formais, tal tipo de atitude é desencorajada, e tal argumento é classificado na
verdade como uma falácia, isto é, um erro de argumentação.
e) Argumento por evidência: o
fato de nossas canções serem violentas e as estrangeiras serem cândidas não
significam que brasileiros se tornarão violentos e estrangeiros serão cândidos
e pacíficos. Evidência: George W. Bush e Tony Blair não foram educados com
canções violentas como as nossas, mas com canções puras e pacíficas dos folclores
inglês e americano. O texto foi escrito na época da guerra contra o
Afeganistão.
Como visto, há diversas formas
de argumentar: por analogia, por evidência, e outras não apresentadas no texto,
mas simples, como o uso de dados estatísticos, pesquisas científicas, etc. O
ideal, em um texto dissertativo-argumentativo, é que a redação não seja um
amontoado de achismos, de opiniões infundadas. O autor deve embasar suas
opiniões com argumentos, sejam eles quais forem.
(Fonte: Guia Prático de
Concursos Públicos, editora OnLine, pág. 24 a 26)
Gostei muito dos dois textos, bem como do comentário. Muito interessante!
ResponderExcluirmuito bom mesmo!
ResponderExcluiruma boa
ResponderExcluirNão me canso de ler seu blog e de indica-lo para meus alunos. Parabéns pela contribuição ao ensino da leitura e produção de textos,
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