Gustavo Atallah Haun[1]
1.
INTRODUÇÃO
A
fábula escrita pelo Bruxo do Cosme Velho, Um
Apólogo, é considerada uma das mais lidas e atuais de sua lavra. O texto
simples, escrito na década 80, do século XIX, traz um recorte interessante da
sociedade da época e muitas inovações do ponto de vista narrativo.
1.1 O
INUSITADO FOCO NARRATIVO
Se
a base de todos os textos de caráter narrativo é o narrador, sem ele
naturalmente não há estória, Machado de Assis (doravante MA) faz uso de um
narrador que no princípio é onisciente: “Era
uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:” (1º§).
Os
leitores de Um Apólogo, no entanto, podem se deparar com elementos do tipo: “Não sei se disse que isto se passava
em casa de uma baronesa” (16º§,
grifos nossos), indicando aí uma participação ou, no mínimo, uma
intromissão do foco narrativo.
Da
mesma forma, acontece no penúltimo parágrafo (23º§,
grifos nossos): “Contei esta
história (...)”, e só então é percebido que a estória toda fora
narrada a outra pessoa – um emblemático professor de melancolia –, tratando-se
de uma mescla entre o que está sendo narrado no tempo psicológico
(narração-onisciente) e no tempo cronológico (narração-participante ou intromissão
do narrador).
Não
bastasse essas inovações, MA faz uso de um narrador irônico, no pequeno trecho: “(...) entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar
a isto uma cor poética.” (16º§). Como crítico do romantismo que
era na fase realista, Machado distrai os leitores com uma intromissão do
narrador, citando a deusa grega, com seus cães caçadores, para criar uma imagem
que representasse a costureira em ação, com a agulha e a linha. “Somente” para
dar ao texto uma tonalidade poética, já que estava muito crua, muito
fanfarrona, muito desgastada com o atrito das duas personagens principais até
então. Ironia à parte, o fragmento também se configura como uma intromissão do
narrador.
1.2 OS PEQUENOS-GRANDES
PERSONAGENS
O
texto machadiano apresenta dois personagens principais logo no primeiro
parágrafo sem, contudo, indicar se há protagonismo e antagonismo. Na verdade, o
novelo de linha e a agulha são anti-heróis: os dois brigam, disputam, duelam
por vaidade, por orgulho, por mero egoísmo, o que faz a natureza de ambos serem
semelhantes e suspeitas.
Se
do ponto de vista da importância eles são principais, a caracterização dos dois
é plana ou linear, já que não há complexidade, mistério, transformações dos
personagens ao longo da trama. Talvez a agulha, por no fim se dar mal e se
sentir humilhada, poder-se-ia caracterizá-la como uma personagem esférica ou
redonda, mas ao ler o conto percebe-se que a natureza dela não é mudada. A
impressão é que o orgulho e a vaidade permanecem, apesar de tudo.
Os
demais atores são todos secundários e igualmente planos: baronesa(16º§), costureira(16º§), modista(16º§), alfinete(21º§) e
professor de melancolia(23º§).
1.3 O
EQUÍVOCO DO TEMPO
A
um leitor despreparado o texto camufla o tempo em cronológico e somente no fim
ele se mostra, aos que percebem, como psicológico.
Inicialmente
o tempo da estória não se mostra, nunca se saberá a época em que ela se passa,
mas é de suspeitar que seja uma época de gala, de muita pompa e riqueza, já que
são retratados fatos da casa de uma baronesa, que frequenta bailes e dança com
ministros e diplomatas.
Já
o tempo cronológico é marcado na seguinte passagem:
“(...) Caindo o sol, a costureira dobrou a
costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nesse e no outro,
até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa
vestiu-se.” (18º e 19º§, grifos nossos)
Assim fica delimitado o lapso temporal, em torno de
quatro, cinco dias, passa-se toda a fábula machadiana.
Detalhe para a ironia “acabou a obra”: será que Machado está comparando um simples vestido
de baile a uma obra artística? Ou quem sabe ao trabalho manual digno de uma
artista?
E, então, somente é revelada a verdade para os
leitores na penúltima parte, quando tudo parece solucionado:
“Contei esta história a um professor de
melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido
de agulha a muita linha ordinária!”(23º e 24º§)
Está resolvido o quebra-cabeça. O narrador da
fábula estava contado uma estória ao simbólico “professor de melancolia” (nos
dias atuais seria professor de depressão), e este se identificou com a
narrativa. Conclusão: tudo se passa na memória e na imaginação do agora
narrador-personagem secundário, só desvendado no final, ou seja, a estória toda
é em tempo psicológico.
1.4 OS ESPAÇOS DA AÇÃO
O espaço reduzido da trama, que inclusive já foi
citado acima, não tem muita importância, nem descrições pormenorizadas, cuidado
especial, etc. Fica-se sabendo do lugar em que tudo ocorre nas passagens: “(...) quando a costureira chegou à casa da baronesa. (...) em casa
de uma baronesa”
(16º§, grifos nossos) e também: “E era tudo silêncio na saleta de costura” (18º§, grifos nossos).
Há uma amostragem, embora
superficial, do castigo imposto à perdedora da intriga, que indica o espaço em
que habitará futuramente a agulha: “(...)
enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio
das mucamas?” (21º§, grifos nossos). Isso pode refletir o nada que a espera, o espaço
adequado à sua desimportância no mundo.
1.5 O ENREDO ENTRELAÇADO
Como
um verdadeiro bruxo, misturando todas as suas essências em um mesmo caldeirão,
MA inova também no enredo, na espinha dorsal do seu texto curto, fazendo uma
mistura entre a estrutura narrativa denominada clássica.
A apresentação
do texto é feita no primeiro parágrafo (“Era
uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha”) e aí os distraídos
pensam que ela acabou. Ledo engano.
Há uma
intercalação da complicação, feita do 2º ao 15º parágrafos, quando a agulha e o
novelo de linha entram em atrito. Notadamente essa parte é feita em discursos
diretos, tirando do narrador toda a ação ou pensamentos que pudessem desviar
dos objetivos do momento.
Então, como se
nada mais se esperasse, eis que retorna a apresentação, continuando o que seria
a introdução (indicação dos personagens, do tempo, do espaço, na situação
inicial):
“Estavam nisto, quando
a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em
casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás
dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou
a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas,
pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira,
ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a
agulha:”
(16º§)
Dessa
forma, há um breve retorno também à complicação, quando a agulha retoma o
debate, tentando irritar a linha:
“— Então, senhora
linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta
costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela,
unidinha a eles, furando abaixo e acima...”
(17º§)
A linha ficou
quieta para não dar corda aos devaneios daquela, e as duas seguiram os seus
trabalhos e o tempo foi passando.
Só então o
leitor é elevado ao clímax da fábula (19º ao 22º), quando o narrador revela
todo o suspense, toda a expectativa: a agora importante linha vai ao baile
dançar com ministros e diplomatas, enfeitando a sua dona, e a agulha,
humilhada, é consolada pelo alfinete de cabeça grande e não menor experiência,
indo parar no cestinho das aias.
Por fim, o
desfecho é feito nos dois últimos parágrafos (23º e 24º), em tempo cronológico,
retomando a realidade ente o narrador e o professor de melancolia.
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto
supracitado, escrito em pleno século XIX, para uma época afrancesada, chamada de
belle époque, é uma crítica mordaz
aos costumes, à superficialidade e ao estilo de vida já naqueles tempos idos.
Através de
objetos inanimados, Machado cria a sua fabuleta incorporando atos humanos, ou
desumanos como queiram, fazendo a todos enxergarem a condição precária do
homem: egoísta, vaidoso, orgulhoso, prepotente.
Ao leitor
superficial, nada parecerá mais do que uma briga entre uma agulha e um novelo
de linha pelos fatores acima descritos, uma querendo ser mais importante do que
a outra.
Já ao leitor mais
crítico, afeito aos textos complexos, verá particularidades de vidas marcadas
por bajuladores, aproveitadores, seres parasitas que se esfalfam com o trabalho
alheio e, claro, ficam com todos os créditos, com todos os louros.
Esse tal
“professor de melancolia” representa uma figura altamente imagética no conto:
um ser que ensina tristeza, que é mestre em depressão, que é catedrático em nostalgia
e em se dar mal, ser passado para trás. Ele tem servido de agulha (de
desbravador, de aventureiro, de lutador, embora arrogante e querendo
reconhecimento) a muita linha ordinária, ou seja, àqueles que montam nas costas
dos pioneiros para realizar a labuta mais ínfima, mais fácil, e, no entanto,
levar toda a glória.
Quantos não se
veem assim nas empresas, nos cargos públicos, em todas as áreas da atualidade?
Machado de
Assis de ontem se mostra, acima de tudo, um sensível visionário da alma humana,
mesquinha e medíocre ainda hoje, em meados do século XXI.
3. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ASSIS,
MACHADO DE. Para Gostar de Ler - Volume 9 – Contos. Editora Ática: São Paulo, 1984. P. 59.
CARA,
Salete de Almeida. Machado de Assis nos anos 1870: A Preparação do Romance
Realista. In: O Bruxo do Cosme Velho.
Machado de Assis no Espelho. São Paulo: Alameda, 2004. P. 29 a 49.
GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. Série Princípios. São Paulo: Editora
Ática, 1991.
GUIMARÃES,
Hélio de Seixas. Os Leitores de Machado
de Assis. O romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19. São
Paulo: Edusp. P. 138 a 147.
MIGUEL-PEREIRA,
Lúcia. Machado de Assis. In: Prosa de
Ficção (De 1870 a 1920). [SR]
[1]
Graduado em Letras pela UESC, professor de Redação dos Ensinos Fundamental, Médio
e Pré-Vestibulares de Itabuna. Escreve semanalmente em jornais e sites de
Itabuna e Ilhéus.
Muito bom seu site... Deu para eu tirar algumas duvidas sobre O Apologo. Obrigado
ResponderExcluirProfessor Glaucio Xavier - Ensino Fundamental - Parauapebas
Apenas queria saber em qual caracteristica romantica esse conto se depara.........
ResponderExcluirA presente análise do texto encerra, de forma inequívoca, uma grande contribuição a todos que têm paixão pela literatura. Acima de qualquer coisa, ela vem nos acordar para a importortância de atermo-nos à intencinalidade do texto. Parabéns.
ResponderExcluirNo entanto, gostaria, humildemente, de retificar um pequeno desvio (provavelvente de digitação)que se encontra nas considerações finais da análise: o século dezenove (XIX)foi grafado ¨IXX¨.
Marcelo da Silva Souza (FACITE)
Muito bem elaborada essa análise . Parabéns e muito obrigado por esse reforço que garantiu muito em minha pesquisa.
ExcluirMuito bem elaborada essa análise . Parabéns e muito obrigado por esse reforço que garantiu muito em minha pesquisa.
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ExcluirMuito bem elaborada essa análise . Parabéns e muito obrigado por esse reforço que garantiu muito em minha pesquisa
ExcluirMuito bem elaborada essa análise . Parabéns e muito obrigado por esse reforço que garantiu muito em minha pesquisa
ExcluirMuito bem elaborada essa análise. Parabéns e muito obrigado por esse reforço, que garantiu muito na minha pesquisa.
ResponderExcluirEsta atividade prática visa a desenvolver as habilidades e competências relacionadas à leitura (verbal e não verbal) e à produção textual (verbal e não verbal).
ResponderExcluirLeiam o texto "Um apólogo", de Machado de Assis. Há um áudio também sobre o mesmo texto.
Posteriormente, escolham dois objetos e estabeleçam uma moral da história. Depois, produzam um diálogo entre os dois objetos (os quais, ao dialogarem, se transformarão em personagens) que sugiram a moral. nao consigo fazer o que se pede assima vc pode ajuadar
Qual e mensagem que o conto a agulha é a linha que passa para os público que ler o conto??
ResponderExcluirQue ninguém deve ser melhor do que os outro. O que te beneficia pode não ser o melhor para seu próximo.
Excluir"Estória"???
ResponderExcluirgeografia
ResponderExcluirA presente análise do texto encerra, de forma inequívoca, uma grande contribuição a todos que têm paixão pela literatura. Acima de qualquer coisa, ela vem nos acordar para a importortância de atermo-nos à intencinalidade do texto.
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